Nos últimos anos, a facilidade de acesso a imagens de satélite tem permitido a observação “desde lá de cima” de ilegalidades ambientais cometidos “cá em baixo”. Se você leitor tem acesso à internet e usa com frequência o programa Google Earth, uma ‘rápida visita’ à região compreendida pelos municípios de Plácido de Castro e Acrelândia permite ver claramente a situação de ilegalidade existente na maioria dos lotes dos projetos de assentamentos do Incra daquela região quando o assunto se refere ao tamanho mínimo da reserva legal que eles deveriam preservar.
Esta situação é comum na maioria dos projetos de assentamento existentes no Acre. A imagem que ilustra este texto, um recorte de algumas propriedades em um projeto de assentamento do Incra nas cercanias de Brasiléia (os retângulos correspondem aos lotes), permite ver com facilidade que algumas propriedades já alcançaram 80% de desmatamento da floresta, quando a lei exige exatamente o contrário.
Originalmente planejados para receber pequenos agricultores e suas famílias em pequenos lotes de 100 hectares, esse tipo de assentamento agrícola se constitui, na atualidade, em um modelo anacrônico que, indiretamente, promove a destruição paulatina da cobertura florestal para, em seu lugar, serem implantadas pastagens para a criação extensiva de gado. Se alguém fizer uma visita às propriedades ilustradas na figura acima seguramente constatará que não existem mais ‘pequenos agricultores’ assentados no local. E não será surpresa se também verificar que já faz muitos anos que os lotes foram vendidos (‘por debaixo do pano’) para fazendeiros que estão, gradativamente, transformando o projeto de assentamento do Incra em uma grande fazenda.
Essa prática é generalizada por toda a Amazônia. Logo que o Incra emite o título de posse definitiva, muitos assentados vendem os lotes para outras pessoas, quase sempre fazendeiros em busca de terras baratas para expandir suas propriedades. Depois de vender os lotes, os novos ‘sem terra’ vão bater nas portas do Incra exigindo novos lotes. E quando são agraciados com novas áreas de terra, a primeira coisa que eles fazem (isso é inevitável) é desmatar “um pouquinho” da floresta para cultivar milho, arroz, feijão, mandioca e outros produtos alimentares. Muitos até formam umas poucas hectares de pasto para criar uma dúzia de cabeça de gado. Nada que cause grandes estragos. Entretanto, se isso se repete constantemente, o impacto ambiental desta rotina é enorme.
Resumindo o problema: estamos caminhando em círculos. Tanto sob o ponto de vista da reforma agrária quanto de desmatamento. O irônico é que pela lei da reforma agrária, os lotes de projetos de assentamento não podem ser revendidos e, teoricamente, áreas destinadas para pequenos agricultores deveriam permanecer como tal e não transformadas em grandes fazendas de gado. Infelizmente isso tem acontecido o tempo todo e, pelo menos no Acre, todo mundo vê e sabe onde as fazendas de criação de gado estão prosperando nos projetos de assentamento. Se nada for feito, vamos precisar de muitos “Brasis” para atender a demanda de uma reforma agrária feita “as cegas” e sem critérios.
Um exemplo presente do que o futuro nos reserva está acontecendo no Projeto de Assentamento (PA) Carão, localizado a cerca de 50 km da cidade de Rio Branco. Esse assentamento, criado em 1991, possui uma área de pouco mais de 11 mil hectares nas quais estão assentadas cerca de 270 famílias que ocupam lotes com área média de 60 hectares. Um trabalho publicado por pesquisadores da Universidade de Brasília (UNB) em 2013 alerta que, mantido o ritmo de desmatamento praticado pelos pequenos proprietários, antes de 2018 toda a vegetação fotossinteticamente ativa do PA Carão terá sido suprimida. Na atualidade a reserva legal, que deveria recobrir 80% da área dos lotes, ocupa apenas 39% da área total do projeto de assentamento.
Uma ameaça que paira sobre os remanescentes florestais do PA Carão é a predominância de florestas abertas com bambu. Como se sabe, a cada 28 anos as populações de bambu morrem naturalmente e se esse evento ocorrer no período mais seco do ano, as florestas locais ficarão extremamente susceptíveis ao fogo. No mesmo estudo, os pesquisadores da UNB constataram que durante a grande seca ocorrida em 2005 pelo menos um terço da área do PA Carão foi afetado por queimadas favorecidas pela estiagem anormal. Assim, além da ameaça direta do homem e do comportamento natural de parte das plantas que forma a vegetação, as florestas sofrem com os eventos climáticos decorrentes da mudança climática em curso.
Em 2006 a engenheira agrônoma da Ufac, Sumaia Vasconcelos, alertava em uma reportagem do site ‘O Eco’ que ‘grande parte dos assentamentos no Acre apresenta menos que 50% da reserva legal e mata ciliar totalmente destruída’. Na época, trabalhando com monitoramento de queimadas no Parque Zoobotânico da Ufac, Suamaia dizia ainda que nos municípios onde os projetos de assentamento estavam localizados o número de focos de calor detectados por satélite era bastante elevado. “No leste do estado, onde aconteceram 40 dos 60 assentamentos no ano passado (referindo-se ao ano de 2005), foram registradas mais de 80% das queimadas do Acre”.
A situação ambiental precária dos assentamentos agrícolas na Amazônia não é novidade. Assim como as velhas desculpas para justificar a sua insustentabilidade: ‘falta de orientação e acesso a técnicas avançadas de cultivo levam os pequenos agricultores a continuar a com a prática de corte e queima’, ‘falta de apoio para o cultivo e de suporte para o escoamento da produção, além da precariedade das estradas estão entre as principais razões para os assentados deixarem suas terras logo depois de serem assentados pelo Incra’.
Na teoria, então, bastaria fazer assentamentos próximos a centros consumidores ávidos para comprar a produção agrícola dos assentados e ter por perto as instituições de apoio técnico, ambiental e financeiro, certo?
Não é o que parece se olharmos a situação do PA Carão, que está localizado a apenas 50 km de Rio Branco, que se constitui não apenas no maior mercado consumidor da produção agrícola acreana, mas também é sede de todos os órgãos e instituições ligadas ao setor agrícola e ambiental do Estado: Seaprof, Secretaria Estadual de Agricultura, Departamento de Florestas (Sedens), Secretaria Municipal de Agricultura, Secretarias municipal e estadual de Meio Ambiente, Incra, Ibama, Imac, Embrapa, Ufac e instituições de fomento agrícola.
Vejam que com todas estas ‘vantagens competitivas’, as perspectivas ambientais do PA Carão são as piores possíveis e se prevê que antes de 2018 sua área florestal deverá ter sido suprimida.
Quem errou e não procurou corrigir os erros? Quem se acomodou e não foi à luta para mudar a situação? Estas são provavelmente as perguntas óbvias que muitos costumam fazer com o dedo apontado para os possíveis culpados quando a situação é irremediável. Felizmente o desastre ainda não se consumou e ainda dá tempo para unir esforços e evitar que essa ‘mancha’ fique para sempre marcada em todas as pessoas e instituições que tem o dever moral e legal de prevenir eventos como o que se anuncia para o PA Carão.
*Evandro Ferreira é engenheiro agrônomo e pesquisador do Inpa/Parque Zoobotânico da Ufac