Toda vez que venho a Rio Branco, e faço isso quase toda semana, cumpro em minha cidade uma agenda politica intensa com a ajuda dos meus gabinetes em Brasilia e aqui na minha querida cidade. Desta vez, cheguei na madrugada de quinta (5) e só retornarei amanhã, segunda. Como falei, participei de muita coisa no período, mas quero me reportar apenas, e em especial, a um tema que me apaixona que é a economia florestal. Na sexta-feira, 6, participei do I Encontro de Povos e Comunidades Tradicionais do Acre no Anfiteatro Garibaldi Brasil, na UFAC, e minha missão foi opinar sobre “como viabilizar uma economia sustentável nas comunidades tradicionais”.
Considero este tema fascinante, até porque representa um grande desafio para nós acreanos, e também porque é um processo no qual estamos envolvidos há algumas décadas. Acredito que, de certo modo, nossos pais e avós estiveram envolvidos a vida toda, desde a ocupação do Acre. Como sabemos, quando os primeiros nordestinos vieram para cá, ainda no século 19, atraídos pela aventura da borracha, encontraram os indígenas que já viviam aqui há milhares de anos. E, claro, tiveram que aprender com eles como sobreviver num ambiente tão diferente. O escritor acreano/amazonense Abguar Bastos definiu essa mudança de ambiente de forma concisa e magistral: “os nordestinos saíram da seca para o dilúvio”!
Essa é a gênesis da sociedade dos povos da floresta. Durante a aventura da borracha, no século passado, os seringais foram ocupados primeiro por homens solteiros; depois vieram as mulheres e assim se formaram as famílias com um número crescente de pessoas, o que levou a necessidade de se criar um economia extrativista com a exploração de produtos diversos da floresta. Ou seja, além do látex, da madeira e da castanha, as plantas medicinais, os frutos silvestres, a caça, os óleos, as fibras etc. – conhecidos hoje como produtos não madeireiros. Mas a grande maioria dos economistas não conseguem ver isso como algo promissor, de futuro para os extrativistas e para todo o país, preferem enxergar essa economia potencialmente rica, como atraso.
Eu, como engenheiro florestal e homem da Amazônia, enxergo essa riqueza com muita clareza e entusiasmo. Entendo que o mundo capitalista hodierno, em que todos compram ou vendem coisas em excesso, sem se preocupar com a destruição do ambiente é maléfico. Nós, amazônidas, temos a chance de viver num mundo diferente. Os extrativistas, quando não podiam comprar nada, nem fazer nada além de produzir borracha, “trocavam” produtos naturais para sobreviver. Isso virou uma tradição cultural entre os mais pobres, mas hoje eles podem pensar num outro jeito de viver na floresta. Refiro-me a construção de uma economia florestal.
A acreanidade leva a pensar em algo diferente. Nas Reservas Extrativistas conceituadas por Chico Mendes, onde vivem hoje mais de 20 mil pessoas em colocações que possuem em média 500 hectares da floresta mais rica do mundo, está nascendo uma economia sustentável que tende a vender produtos para o mercado internacional. Nessa nova economia é possível sair do “efeito manada”, com a opção pelo original e pelo essencial. Na palestra na UFAC, cheguei a perguntar para o auditório lotado de estudantes, professores, extrativistas, indígenas, lideranças comunitárias e militantes políticos: Vocês sabem o que se produz nas Reservas Extrativistas? Vida!
O mundo inteiro cobiça o que temos: a borracha, a madeira, a castanha, milhares de substâncias a serem descobertos e explorados de forma sustentável sem que tenhamos de viver subordinados às regras do mercado. O que nós precisamos é nos proteger das más influencias e acreditar mais no que somos, no que possuímos como vantagem. Agora me sinto mais seguro de nossas possibilidades acreanas, mas houve um tempo em que que eu morria de medo dos movimentos políticos que queriam transformar o Acre num estado com características de São Paulo. Nós podemos e temos que ser diferentes para ter o domínio, o controle de nossa felicidade.
Podemos citar alguns exemplos: até meados dos anos oitenta, nós víamos montanhas de castanha embarcadas em balsa, no porto de Rio Branco, pois o produto era vendido para o grupo Mutran, de Belém, pelo preço que ele determinava, sem compensar o esforço dos extrativistas. Hoje, a Cooperacre, uma cooperativa de trabalhadores da floresta, compra toda a safra pagando o melhor preço, numa relação que se estende a outros produtos e que tem traços visíveis de identidade e solidariedade. O mesmo acontece com o látex fornecido à Usina de camisinhas de Xapuri e com a Cooperfloresta, que cuida do manejo comunitário da madeira. E isso é apenas o começo de uma economia forte que está nascendo e se firmando.
Durante a palestra, surgiram questões importantes nos debates, que levantam dúvidas sobre a sustentabilidade do processo de desenvolvimento em curso no Acre. Ao invés de incomodar, essas questões nos ajudam aperfeiçoar um processo que pode ser penoso, difícil, mas que sairá vitorioso no final. Porque estamos tratando da nossa história, da nossa identidade. Nos anos 1970/1980, o Acre foi invadido por grupos interessados em acabar com as nossas florestas e com o extrativismo, para introduzir definitivamente o modelo deles de economia e de vida. Mas os nossos acreanos da floresta souberam resistir mostrando um Acre que chamou a atenção do mundo pelo seu jeito de ser. Wilson Pinheiro e Chico Mendes, entre outros, foram assassinados por comandar essa resistência, mas deixaram um rico legado para nós: a nossa floresta, o nosso futuro.
Bem a propósito, ao encerrar minha participação no encontro dos extrativistas na UFAC, a parteira Terezinha, moradora da Reserva Extrativista Chico Mendes, gritou da plateia que queria cantar uma música para mim. A música ela mesmo compôs há 14 anos, época em que eu governava o Estado e estabeleci uma politica criando condições para que famílias expulsas das colocações nos anos de conflito voltassem para a floresta. Desinibida, cheia de felicidade, dona Terezinha subiu ao palco e cantou:
“No Governo da Floresta/ Os indígenas vão ter onde morar/ E os seringueiros alegres/ Pra mata vão poder voltar/Lá a gente não passa fome/Com o Governo da Floresta/ O Acre vai brilhar”.
Obrigado, dona Terezinha, foi a coisa mais linda que ocorreu na minha imensa e proveitosa agenda de sexta-feira.
* Jorge Viana é engenheiro florestal, senador pelo PT-AC, vice-presidente do Senado.