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Vida solta segue leve em alta fidelidade

Num desses dias de ebulição intensa, dei por mim, despertei, passei as mãos nos olhos esbugalhados, surpresos, cúmplices, e resolvi sair à varanda para ver a vida passar lá fora, longe de mim e das minhas fórmulas mágicas de bem ou mal sobreviver. Tudo transcorria mais ou menos como no dia anterior, afora o fato de o rio do Heráclito de ontem que já não é o mesmo de hoje. Então, eu já era outro, se é que assim se pode dizer, ou contradizer.

Um carro da moda me servia de suporte e apoio nas horas mais necessárias, e também nas desnecessárias. A vida nos oitenta era realmente folgazã, um grande barato. Hoje nós, eu e a alma supimpa, digerimos ou sonhamos alguns sonhos por quem já não consegue sonhar. Planejamos e executamos. Estamos por aqui sempre em auxílio de alguém.

E eu, então, planejava também trivialidades, além de pensar o lado que produzia a vida leve. Residia na casa dos pais em aposentos privilegiados. Gastava uns trocados com os víveres comuns consumidos pela família composta, ainda, por alguns irmãos bem leves e amistosos. Uns caras super bacanas, sem defeitos, destes que usam o teu creme dental, a tua roupa, o teu sapato e o teu Ralph Lauren. Eu ainda os amo, afinal, fui aconselhado por uma bruxa gostosa  –  de nome Juliette Depardieu  –   que um dia disse a mim que os filhos do meu pai e da minha mãe são os únicos elos que me atam ao passado. Penso que é conveniente respeitar as coisas ditas e os chamegos feitos por ela.

Uma vivenda aconchegante foi mandada construir por mim para gáudio e regozijo do meu herói maior, o estivador de compleições físicas avantajadas. O orgulho dele era tanto que, todas as vezes em que nos visitava um amigo, notadamente vindo da terra principesca, ou Principado, ele percorria todos os cômodos da residência a mostrar e falar das vantagens de morar em casa própria, num local aprazível como o nosso beco das garrafas, em bairro tradicional… Lá eu fui muito mambembe e afortunado, posto que corações ainda juvenis também ali foram arrancados ainda aos saltos de peitos arfantes e seios túrgidos em sangue vivo.

Toda a semana era bem consumida por mim nas idas e vindas até a academia do conhecimento, onde houvera sido aprovado em concurso público. Lá, havia um chefe bom amigo e grande companheiro de nome Chico, hoje falecido. Uma moça da pele de jambo me ensinava os rudimentos da profissão de barnabé federal. O soldo era bastante vantajoso para um rapazola de hábitos simples e namoradas filhas de famílias também humildes.

Às segundas, a luz aconchegante da vida me iluminava a alma e também o corpo magro. Às sextas sapecas, a vida sorria em gargalhadas marotas, posto que a partir de tal hora todos os gatos ainda são pardos.

Em dias comuns, o bólido que me servia de condução ficava estacionado em frente à casa de sabedoria. Noutros dias – de peleja, diria – ele me aguardava ali por perto de onde os policiais aquartelados não tiravam dele os olhos invejosos… E eu ficava rodando e fazendo piruetas entre os três estabelecimentos do ramo dos alcoólicos. Só mais tarde, bem mais tarde, madrugada em alta, tomava outros rumos quiçá bem conhecidos.

Algum tempo depois do cair da tarde, já noite fechada à chave de ferro, o traje passava porcalças de linho e camisas de seda, além de um sapato de origem talvez alemã. Rodava, sim, as chaves do carro como à cata da companhia da mais bela dentre as componentes do belo sexo.

Um hotel flamejante trazia um bom cardume de moças de conduta irreparável, ou não. Da praça pública, elas ficavam a observar uma ou outra vantagem pecuniária a mais. Cervejas e tira gostos de boa qualidade eram a tônica do ambiente. As mesas eram baixas e aconchegantes. Nunca estivera eu em lugar como tal. Uma beleza maior!

Lá vi, algumas vezes, gente de todos os naipes do baralho, dentre os quais um certo senhor Brasil, nos seus olhos verdes ou azuis, apoiado a uma bengala elegante e cachimbo à boca, poeta, pintor, jornalista, boêmio, político, sacana, advogado e multimídia, como se diz nos dias que hoje correm.

Os mais velhos disputavam o jogo do gamão. Os mais novos jogavam conversa fora, até fosse chegado o momento do aconchego em algum aposento em companhia feminina… Boa parte das vezes era o que ocorria, porque o soldo em cruzeiros novos ou velhos tinha lá as suas vantagens e pagava prazeres do outro mundo, além da bebedeira, é claro.

Ao lado do hotel bacana, havia uma instituição que vendia o tal chope em barricas. Uma delícia! Atravessada a praça e já havia uma casa onde a música brasileira tocava até certa hora. Vinícius, Chico, Caetano, Gil e Betânia, além de outros, apanhavam para cantar. A nata da malandragem se fazia presente. Diziam por ali também fazerem paradas intelectuais de todas as idades e estilos, além dos amantes das cigarrilhas do demônio. Cruzes!

Algum tempo mais tarde, um bar fazia homenagem ao avião e ao inventor deste. Por ali, as coisas e as moças também eram bastante agradáveis, considerando-se a proximidade de casas de libidinagem de média qualidade pagas também a preços mais ou menos. Afora alguma desordem causada pelos valentões que usam a bebida enquanto refúgio e remédio e escola de sopapos, tudo corria a bom termo, na santa paz.

Vida dignificada pelo trabalho semanal, o sábado marcara  –  ele mesmo  –  compromisso com um boteco sui generis. Amiga das melhores, a dona elaborava pratos inesquecíveis que serviam de isca para a cerveja. À frigideira ia uma lata de carne bife acompanhada de arroz e muita cebola de cabeça, como dizem os de cá.

E ali era passada a hora do almoço numa farra que se estendia até oito da noite. Em passadas mais ou menos francas, ia à casa paterna para um banho recuperador depois do qual o destino era a balada em trajes sócio-esportivos. Tudo acontecia como no dia anterior, afora o costume charmoso de amanhecer o domingo num bar bem parecido e quase idêntico ou semelhante a um girau com gê.

As atividades do domingo eram meramente rotineiras, exceto o fato de haver uma completa subtração da cerveja dos cardápios e rodopios perigosos pela vida afora. Domingo, nunca! É que havia o compromisso com Aquele que sempre a mim concedeu tudo. Depois da missa, ainda circulava na praça, ou fingia ler a revista Manchete sentado a um banco sob os olhares de umas moças que sequer desconfiavam que eu já sabia ler e escrever de carreirinha.

Antes, à tardinha, adentrava o mundo do futebol e ia ao stadium ver alguns jogos ainda considerados os mais maravilhosos por mim assistidos, logo aqui, em terras de Plácido e Galvez. Tal costume trouxera de Xapuri, a cidade onde aconteceu a primeira contenda do esporte bretão em terras acreanas.

Um dia, ouvi pergunta escorregadia feita pela minha mal estudada bruxa gostosa de nome Romy Stletton. Depois de passado um bom verniz nas frases, foi mais ou menos assim:

– Como juvenil metido a filósofo, algum pensador teria sido o autor de uma síntese acerca do seu modus vivendi i operandi, durante toda a sua dita louca juventude? – Ao que prontamente respondi, de bate pronto:

– Eis aí! Foi o Sócrates, o grego, não o jogador de futebol…

E completei:

– Segundo o filósofo gigante e bom de porrada, o que deve caracterizar a juventude é a modéstia, o pudor, o amor, a moderação, a dedicação, a diligência, a justiça e a educação. São estas as virtudes que devem formar o seu caráter.

Sempre fui um pouco fala mansa, a não ser em algumas horas no meio desta vida em que me é muito exigido falar em alto e bom som, como em palestras e conferências. A timidez algumas poucas vezes me fez recuar ante a beleza desmesurada de certas representantes do belo sexo. Amei demais e ao mesmo tempo. Não fui dado a meter a mão em cumbuca. Sempre ouvi primeiro. O foco ainda é uma das minhas principais características. Sou justo até no jeito de caminhar e educado até onde me deixam ser… Tenho caráter firme a partir das tripas.

Era desse jeito, sim. Foi dessa forma que muito bem me ensinaram a viver dias mansos e bem vividos os velhos mestres, como o Sócrates, o Karl Marx, o Dostoievski, o Garibaldi Brasil, o Isaac Nogueira e o Astrogildo Berimbau, com muita calma, jeito e, o pior, em meio ao sacolejo e às marolas em que os perigos iam e vão sempre de encontro aos mais jovens, como sempre aconteceu.

Depois, um dia, disse a mim o estivador hercúleo:

– A vida é dura para quem é mole.

Concordei… E pronto.

* Cronista e articulista jornalístico nascido sob o sol morno de um abril qualquer do século anterior, no Principado de Xapuri.
www.claudioxapuri.blog.uol.com.br

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