Semelhante ao Tratado de Tordesilhas, nas terras do Acre, as fronteiras do Brasil com a Bolívia foram estabelecidas antes do conhecimento da realidade geográfica. O Tratado de La Paz de Ayacucho, de 1867, reconheceu que as terras acreanas pertenciam à Bolívia. Por essa razão, na época, foi autorizada a instalação de uma aduana boliviana na cidade de Puerto Alonso, a nossa Porto Acre de hoje. A atual divisa do Acre com o Amazonas correspondia à linha de fronteira entre Portugal e Espanha, como estabelecido pelo Tratado de Madri de 1750.
Alguns anos depois, a ocupação das terras acreanas por seringalistas brasileiros apoiados pelo Governo do Amazonas resultou na ‘Questão do Acre’, que mais tarde resultou na guerra que nós, acreanos, conhecemos como a ‘Revolução Acreana’, iniciada há 112 anos neste dia 6 de agosto. Mas essa é uma história bem conhecida e muito estudada.
Com o fim da Revolução Acreana, Brasil e Bolívia estabeleceram um novo tratado, ainda sem conhecer bem para onde corriam as águas de alguns rios do Acre. Tanto isso é verdade que o mapa que acompanhou a exposição de motivos para a assinatura do Tratado de Petrópolis indicava que o Rio Rapirã era um afluente do Rio Iquiri. Daí a razão de no Parágrafo 5º do Artigo 1º do Tratado de Petrópolis constar o seguinte:
“….a fronteira…subirá pelo Abunan até a latitude 10º 20’. Dahi irá pelo parallelo de 10º 20’, para o oeste até o Rio Rapirran e subirá por elle até a sua nascente principal”.
Vamos repetir, o mapa usado como base indicava que o Rio Rapirã era um afluente do Iquiri. Na realidade na citada latitude 10º 20’ está a “boca” do Rapirã, em sua confluência com o Abunã, na altura da atual cidade de Plácido de Castro.
Vejamos o que diz o Parágrafo 6º:
“Da nascente principal do Rapirran, irá pelo parallelo da nascente, encontrar a oeste o Rio Iquiry e subirá por este até a sua origem, donde seguirá até o Igarapé Bahia pelos mais pronunciados acidentes do terreno ou por uma linha recta, como aos Comissários demarcadores dos dois paizes parecer mais conveniente”.
Quando os comissários demarcadores foram aplicar no terreno o que dizia o Tratado de Petrópolis, verificou-se que era inaplicável. Eles descobriram que Rapirã era um afluente do Rio Abunã! A solução encontrada foi usar como fronteira o Rio Abunã e o Rapirã. Até hoje, os brasileiros que moram entre o Rapirã e o Abunã são contra a linha de fronteira e essa é uma das causas da ocupação desta região por centenas de famílias brasileiras, que mais tarde passaram a ser conhecidas como “brasivianos”.
A fronteira do Brasil com a Bolívia pelo Rio Rapirã foi ratificada pelo chamado Tratado de Natal, assinado no Rio de Janeiro em 25 de dezembro de 1928 que no seu Artigo I, diz:
“A linha de fronteira descripta no Tratado de 17 de Novembro de 1903, no trecho comprehendido entre a nascente principal do Rio Rapirran e o Igarapé Bahia, seguirá da referida nascente principal, em linha recta, a foz do Rio Chipamanu; dahi, continuará pelo Chipamanu acima, até a sua nascente principal, de onde prosseguirá em linha recta, até a nascente do braço oriental do Igarapé Bahia. Dessa nascente, a linha divisória baixará pelo mesmo braço oriental e pelo Igarapé Bahia, até foz deste no Rio Acre”.
Assim ficou delimitada a fronteira, cujo marco da nascente principal do Rapirã fica muito próximo da cidade de Capixaba (menos de 4 km). E ali, na margem direita do Rapirã, no Ramal Brasil-Bolívia, em terras reconhecidamente bolivianas, está surgindo uma cidade com o sugestivo nome de Villa Bela Flor. E do lado brasileiro do ramal, está surgindo outro aglomerado urbano com o nome de Vila Amapá. Possivelmente o brasileiro “dono das terras” resolveu aproveitar o momento e está “arruando”, loteando e fundando uma nova cidade acreana. Quem estiver interessado no assunto, pode visitar facilmente de carro essa futura cidade binacional, sem aduana, sem burocracia. Villa Bella Flor e Vila Amapá ficam a menos de quatro quilômetros do asfalto da BR-317.
Com Villa Bella Flor, agora são dois os pseudo-aglomerados urbanos bolivianos localizados a menos de 70 km de Rio Branco. A outra é a Villa Evo Morales, em frente à cidade de Plácido de Castro. Ao contrário das cidades brasileiras de Brasiléia e Epitaciolândia e da cidade boliviana de Cobija, frutos da ocupação normal tanto sob o ponto de vista histórico como econômico dos territórios brasileiro e boli-viano, Villa Bella Flor e Evo Morales não merecem sequer a denominação de vilas posto que se constituem em um amontoado de lojas, em sua maioria precárias, estabelecidas unicamente para atender consumidores brasileiros.
A consolidação destes entre-postos comerciais bolivianos tão próximos de Rio Branco parece não ser benéfica para a economia e a sociedade acreana e brasileira. Além da internação ilegal de produtos importados sem o pagamento dos impostos de importação, que é um problema menor, o tráfico de substâncias entorpecentes da Bolívia para o Brasil é facilitado em razão da omissão e da aparente falta de interesse dos governos Federal e Estadual em fiscalizar e controlar de forma efetiva o intenso movimento de milhares de pessoas que diariamente cruzam a fronteira nas duas localidades.
Não dá para negar que a facilidade de acesso a entorpecentes adquiridos no país vizinho por parte da população de Rio Branco é, talvez, a grande responsável pela transformação de nossa cidade em um palco de violência, morte e desagregação social como nunca se viu antes. Dessa forma, seria salutar que nesse feriado que celebra o início da luta que resultou na incorporação do Acre ao Brasil nossos políticos e administradores públicos brindassem a sociedade acreana com medidas efetivas para controlar uma situação que está próxima do incontrolável.
*Evandro Ferreira é engenheiro agrônomo e pesquisador do Inpa e do Parque Zoobotânico da Ufac.
**Alceu Ranzi é paleontologista e professor aposentado da Universidade Federal do Acre.