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A balada do amor que nunca sorriu

Naquelas últimas horas, ela estivera febril, entre espasmos líquidos e palavras desconexas. Ao quarto soturno viera a mãe a lhe observar a pulsação. Um termômetro fininho de vidro lhe fora enfiado à boca. Trinta e nove de temperatura corpórea.

Para aquela gente miúda e de conceitos rasos, mas sólidos, nenhum sentido havia naquela situação. Só porque o noivo quase marido se havia ido mundo afora em busca de outros caminhos e carinhos, nenhuma razão poderia justificar tal azáfama.

– Coisa de menina mimada. – Dizia a tia encolhida nos seus parcos dentes e usados anos.

– Coisa de mulher abobalhada. – Pregava a cunhada velha e cheia de dobras e vincos nos queixos e nas virilhas arroxeadas.

Ao que ela choramingava:

– Uma mulher feia como você, tia Duduca, não se apaixonou. Quem nunca suspirou de amores por um poeta mentiroso ou por um professor cheio de brilho nos olhos?… Atire a primeira pedra! Vá-se à porra!

O professor perfeito lhe fora ministrar aulas no vernáculo mais puro, mais fiel, mais consubstanciado. Fazia uso com eficiência de um vozeirão potente amparado por acústica de eletrônicos de última linha, e mais um português potente fluentíssimo, além do conhecimento de causa, afora as demais competências ditas inomináveis.

Puxava pra lá. Arredava pra cá. De longe, os meandros mais intrínsecos da língua eram absorvidos por todos, notadamente pela Esterzinha linda, sempre com os olhos arregalados e fitos naquele mestre sala dos mares que parecia ter vindo de outra galáxia.

Certamente, para impressionar, ele declamara as três estrofes iniciais de Os Lusíadascom o fito maroto de ilustrar a parte do curso que tratava sobre as origens da língua de Camões. Depois, no item relativo aos fundamentos da morfologia, cantou em bom tom Construção, de Chico Buarque, uma melodia ímpar em uma poesia riquíssima em proparoxítonas. Enfim, todos os dias ele circulava em torno da obra de um poeta da modernidade ao abordar os temas do programa. Show de bola!

Um dia, então, o agora denominado salvador de peles, resolveu declamar Vinícius de Moraes e o Soneto da Fidelidade. Coisa de Deus. Aquela foi uma interpretação teatral majestosa feita para uma platéia provinciana, mas sensível. Muito ou pouco ou nada faltou ao que pede a boa dramaturgia. Ele estava, simplesmente, espetacular. O teatro e o palco quase vieram abaixo, como se a sala de aula imensa, de uns cem alunos, assistisse embevecida a um ato composto por William, o inglês.

 “… E quando, mais tarde, me procure (quem sabe)
A morte, angústia de quem vive,
Ou quem sabe a solidão, fim de quem ama…
… Eu possa te dizer do amor que tive
Que não seja imortal, posto que é chama,
Mas que seja infinito enquanto dure”.

O amor, de repente, houvera por bem ir para a crista da onda. Ficara na moda o chamego. Estava no ar o bem querer demais. Agora, então, a paixão já ardia levinha a partir dos recônditos mais íntimos do ser. Ainda havia mais um ou dois corações a esmo naqueles tempos bicudos e espaços soturnos de meu Deus.

Na terceira noite, altas horas, de braços dados, depois da aula, a bela Esterzinha declarou, já, amor eterno ao comedido e leve salvador de peles. Ele, em êxtase, assentiu com meio franzir de sobrancelhas e mais um pé atrás e cinco na frente. A índole era de um estilo arteiro, pecaminoso, sacana e incontrolável.  Caíra a sopa no mel. Juntara-se a fome com a vontade de comer. Ele se fez pólvora. Ela, estopim. Veio, então, um cupido imoral e acendeu o isqueiro. Não dava para recuar, nem cair, nem temer… Era partir pra cima e depois correr pro abraço. Ó xenti!

E foi aí que a libido habitou a flor da pele, contundente, maciça, em jorro, molhada de suor, apesar do refrigério do ar dos aposentos confortáveis em altos btus.

O dia quase não amanheceu, porque até aí ninguém dormiu e todos estavam, sim, acordados e muito despertos. Veio, enfim, o cansaço que dominou o amor a esmo, com cheirinho de torresmo, seja lá como for. Adormeceram mesmo aí pelas cinco no hotel à beira da estrada dos pecados da carne em labaredas. Estavam exaustos de não dormir, mas tão somente agir. Em certos momentos da vida, a ação é preponderante posto que imponderável, até porque a libido fica aos gritos… Vá entender!

Como coração dos outros é terra em que ninguém anda, ficaram noivos já no outro dia com as bênçãos de uma mãezinha  –  a dela   –  amável a perder de vista. A filha queria e se derretia de querer. A alma doida do salvador de peles estava aos berros, pululante. Fazer o quê?

Dos domínios onde ela vivia, assim que concluído o curso, vieram para a capital onde ele pousava, com o fim de conhecer os pais deste. A mãe não viu com bons olhos aquele relacionamento moderninho em que a namorada já dorme na cama do noivo, inocentemente, abraçadinha a ele. O pai, um homem bem afoito, correu os olhos pela alma daquela princesa loura de cabelos encaracolados e já viu ali um belo espécime com a qual o filho poderia tirar raça de qualidade superior. Ficaram amigos na mesma hora e ela o tratou por meu sogrão, o pouco carismático e agora o homem mais risonho do mundo.

Na sexta, de chegada, a pré-estréia ocorreu num desses ambientes soturnos que alugam sexo pela hora da morte. Coisa de louco! Depois, a boa roupa, um barzinho e um violão. Tudo de bom! O sábado correu célere pela vizinhança a apresentar a undécima noiva do bardo cheio de piruetas naqueles dias de verão. Cervejinhas e vivas ocorreram por ali em comemoração ao futuro evento em que alianças seriam trocadas em meio às festas das melhores, em duas cidades.

Veio o domingo e o comunicado:

– Pai! Mãe! Estamos noivos e vamos nos casar agora em agosto, mês que vem. Que tal?

A mãe achou um tanto precipitado. Queria um tempo para que as coisas fossem melhor organizadas, uma boa casa fosse adquirida, móveis e apetrechos pudessem ser comprados, dentre outros que resumiam aquela exigência absurda segundo a qual você precisa conhecer melhor esta com quem você está se comprometendo. Coisa boba. Besteira de mulheres de um século anterior.

O pai era sorrisos e afabilidades por inteiro, logo ele, que havia sido afetuoso com tão poucos durante toda a vida. Disse na ocasião:

– Essa é a nora que eu pedi a Deus. Ela é simples, inteligente, bonita e loura.

Ele jamais se despregara da ideia de muitos homens nordestinos morenos cuja grande finalidade de vida é fazer com que os filhos cruzem com as mulheres mais claras possíveis de modo a que lhes façam o favor de limpar a raça.  Pense num camarada tosco!

Daí em diante, seria um final de semana na fronteira e o outro na capital… Ah! Como é lindo o amor juvenil de primeiras épocas. Tudo sorria para o casal que saiu espalhando por aí a notícia segundo a qual em breve haveriam de casar-se, para o bem de todo o povo de Deus.

Deram, então, os nomes no birô judiciário, com os parabéns de alguns funcionários conhecidos de ambos. Em seguida, quase na mesma rua, foram ao padre italiano amigo e lá também firmaram compromisso para o casório com as bênçãos da santa madre igreja. Em quinze dias correriam os proclamas e pronto, estariam casados.

Foi chegado o dia dos investimentos iniciais. Compraram uma organza importada dos americanos com a qual fariam o vestido. E vieram mais as luvas e as meias finíssimas, além de um arranjo bacana que se coloca nas cabeças das noivas. Os sapatos dela e o enxoval do noivo seriam comprados na capital da província, no fim da semana seguinte.

Nessa época também o noivo dormia ao anteparo do entre pernas da noiva. Uma beleza! Todos eram felizes, inclusive alguns familiares.

Veio a sexta-feira e ela desceu do ônibus, cheia de empolgação. Nova visita ao estabelecimento onde a libido exulta. Depois, para comemorar o final de semana, umas cervejinhas ao cair da tarde, posto que à noite, juntinhos, sairiam para badalar.

O bólido translúcido  –  de nome corcel dois, ou Robin Wood para os íntimos  –  percorreu pouca distância e, antes do banho em duo, a razão do salvador falou mais alto e ele jogou duro:

– Minha querida! Não se zangue. Devo lhe dizer que venho já de uma experiência frustrada que foi parar nas barras dos tribunais e rendeu um divórcio. Há empolgação demais aqui e eu prefiro desmanchar tudo, antes de qualquer coisa.

Ela vociferou os impropérios exatos para a ocasião. Ele deu as costas e caminhou rumo ao carro. Eis que um prato de louça cortou o ar, o salvador se abaixou, e o que se ouviu muito além foi o estalido próprio de um pára-brisa despedaçado feito um coração aos gritos.

Tudo se acabou como nunca deveria ter começado. Uma lástima!

* Cronista e articulista jornalístico nascido sob o sol morno de um abril qualquer do século anterior, no Principado de Xapuri.
www.claudioxapuri.blog.uol.com.br

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