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De desamores, ventos e tempestades

Imagino que o  amor nasceu míope ou talvez cego mesmo, incurável. Perda total. Às vezes penso que é feito um bem contagioso que se vai espalhando, célere ou vagarosamente, em corações de todos os feitios por esta vida afora. Então, quando se dá fé, há até toda uma comunidade que se quer muito bem e troca afetos que fazem o mundo e as circunstâncias melhores.

É claro que, dentre toda a comunidade, há sempre algumas poucas vozes destoantes que, no mais das vezes, findam por aderir à onda de afeição que se propaga pelo ar. Também esses secundários são contagiados pelo bem querer. Há, todavia, um número mínimo dos doentes de si próprio que não têm cura. Destes, a alma morreu. Coitada.

Eu próprio tenho vivido tal ocorrência na casa em que quase habito mais que a minha própria. De uns dias pra cá, noto que todos têm se amado bem mais que antes, quando o desamor imperava acima de todos os sentimentos. Temos hoje nos humanizado. E esse fator alvissareiro, na maioria das vezes, acontece porque apenas uma pessoa planta bonança e colhe boas amizades dentre outros frutos saudáveis e saborosos. Tal fenômeno é espantoso, mas muito interessante posto que bastante enobrecedor e portador de melhorias gerais.

Houve por bem, então, dizer aos filhos meus uma máxima que  – parece-me!  –  é por demais minha. Há o Andrei, o Alan, o Adrian e a Sarah, todos bem jovens, muito bonitos e bastantes saudáveis que precisam, sim, ouvir e depois ler algumas coisas às vezes fúteis e poucas vezes úteis que saem da medula deste poeta vincado pelo tempo velho de guerra.

Afirmo-vos que a vida é fácil, sim, ou relativamente descomplicada. Para ser feliz, não é necessário muito esforço. Eu, por exemplo, poeta e diplomata de araque, tenho notado desde as minhas primeiras épocas que, com um volume razoável de estudos, agindo sempre com otimismo  –   e foco  –  chega-se a patamares superiores com grande rapidez, sem a necessidade de tanto estresse. É conveniente ter paciência, sim, e atitude, antes de qualquer outro fator. Daí, as coisas começam a acontecer.

Ruim mesmo é quando uma pessoa começa a colocar obstáculos no próprio caminho. Aí, certamente, ela tropeçará no vazio, tombará, baterá com a cara no chão e sofrerá demais. Se fui capaz de fazer coisas ruins, eu as deixei para trás. Delas já não me lembro. Nem mais haveria razão para tal. Os meus dejetos e sobejos não podem ser atirados no caminho por onde ainda vou passar. Neles eu posso escorregar e me estatelar com o nariz no chão da minha historieta tão rasa. O meu lixo já não interessa nem a mim. Eu o incinerei sem dó nem piedade. Não mais planto vento porque, como no clichê, as tempestades por certo virão. Amemo-nos hoje, agora e, mais tarde, amar-nos-emos muito mais, com certeza.

Tenho observado que chorar sobre as desgraças passadas é a maneira mais segura de atrair outras. Portanto, deixe os seus desencantos guardados em lugar seguro e de lá não os retire de forma alguma. Esqueça-os, completamente.

Recordo agora a história contada pelo meu amigo poeta cujo codinome Protetor Solar é feito tatuagem que não larga.

Um dia, ele me enviou longa correspondência. Em meio a outros temas, ele abordava a história de uma moça, amiga quase íntima do tempo dos seus tropeços na Irlanda. Bem antes de Pavla-Gwineth, ela passou por ele, numa dessas esquinas bruscas da vida, e findou por deixar-lhe algumas historietas nada leves, mas bem pesadas.

Dividiram alcovas e raros sonhos por algumas poucas vezes. A têmpera da concubina habitava as alturas. Não apenas arrogante, era também um tanto estúpida e afastada, quando o diálogo parco tendia para as discussões relativas ao amor entre dois humanos que se tocam, se sentem e se querem.

-As taras existem, sim. O sexo é quente e vermelho como o sangue. O amor não existe. Isso é coisa que um tolo andou espalhando pela Terra e muitos acreditam na sua existência real. Eu não o creio. Jamais.

Numa noite fria de Natal, em Glenageary, cidade adorável da orla marítima irlandesa, o amável Protetor Solar presenciou cena lastimável um pouco antes da ceia, quando ao vinho ainda não havia sido dado tanto tempo para tamanha adrenalina. Em realidade, um show de desamor.

A mãe da moça houvera mencionado o nome do pai distante desde a mais tenra infância. Soltaram-se os cachorros mesmo. Uma explosão violenta de intolerância se fez ouvir por todo opub onde os três haviam ido passar a meia-noite.

-Não fale mais uma palavra. A causa dos meus problemas cabe exclusivamente a você, que não perpetrou qualquer cobrança e o meu pai se fez afastar porque não havia amor da sua parte. Não suporto quando você me dirige a palavra. Se ele estivesse por perto, a minha vida seria muito melhor e eu não teria passado pelos dissabores que experimentei até aqui. Por mim, a sua existência teria tido um fim há muito tempo, ainda na minha mais tenra infância. Eu, então, não teria tido o desprazer de um contato tão intolerável como o nosso. Pena que você ainda não foi para o inferno, velha desprezível. Cadela abjeta!

Todos olhavam a cena horripilante. O poeta, então, em profunda catarse, resolveu que dali por diante não mais teria essa tal Nancy por perto sequer nos seus sonhos.

Anos depois, o Protetor findou por conhecer o senhor Campbell, gerente de um estaleiro ali mesmo em Glenageary. As suas palavras relativas à filha lhe fizeram ir por uma profunda introspecção e é a partir daí que, baseado no seu relato, resolvi apor em papel estas mal traçadas linhas. Eis mais ou menos o depoimento do pai, quando o poeta disse que conhecia Nancy e gostaria de saber como ela estava levando a vida:

– Nancy sofre de um desamor mórbido. Arranjou uma filha, que agora tem dezesseis anos, e um filho, hoje com cinco, ambos de pais diferentes. A garota mora com o pai em Dublin e tem verdadeira aversão pela mãe. O garoto mora com a avó e não suporta sequer ouvir falar o nome dela. Por isto Nancy é tão infeliz e cada vez mais se afunda num infortúnio doentio que a tem levado a estados de estresse e depressão que duram semanas e são cada vez mais frequentes. Talvez aí esteja o começo do seu fim. Nunca amou e jamais foi amada, por nenhum homem e muito menos pelos filhos.

Meses depois, o poeta soube do desaparecimento de Nancy nas águas geladas do Rio Liffey, próximo ao estaleiro Möhr, nos arredores de Dublin.

Eu, então, cá com os meus botões enferrujados, lembro hoje o Schopenhauer, filósofo alemão do pessimismo. Uma vez, ele escreveu algo muito parecido com um aforismo segundo o qual a nossa tendência é sempre suportar com mais resignação uma infelicidade que nos chega inteiramente do exterior do que uma cuja culpa caiba a nós mesmos.

Não nos cabe fabricar as nossas próprias desventuras. Se você focar nas suas metas com alguma objetividade, os reveses não virão, ou dificilmente acontecerão.

Certo é que nós não precisamos nos tornar especialistas em infelicidades. Nem tudo é tão difícil quanto parece, ou como alguns querem acreditar. No meio de toda uma multidão de otimistas, eu também não creio em tantas dificuldades no enfrentamento da vida.

A vida é dura para quem é mole. Assim diria o Zaratustra lá de casa.

* Cronista e articulista jornalístico nascido sob o sol morno de um abril qualquer do século anterior, no Principado de Xapuri.
www.claudioxapuri.blog.uol.com.br

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