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A irresistível saga do menino do dedo azul

A canoa atravessava balouçante as águas mornas, mansas, densas, mesmo defronte à desembocadura do rio da vida viva e sempre muito ativa, como o tempo inexorável. Carregaram-na com algum esterco a ser utilizado na horta caseira. O menino do dedo azul remava indolentemente. O sol quase a pino. Em seguida, com os irmãos, levariam os sacos barranco acima no rumo de casa. Logo mais, depois do almoço farto em verduras, seria tempo de ir para a escola das freiras aproveitar a oportunidade que aquele tempo benfazejo estava a oferecer.

Benza-nos Deus!
O caminho da sabedoria passava através de uma porta à frente da qual colunas em estilo gótico sustentavam o prédio hoje quase centenário. Era essa via meio clássica meio barroca meio rococó que levava o mocinho magricela às vias de fato, numa luta infinda ao lado dos grandes pensadores ilustrados na enciclopédia mirador internacional.

Um dia, ali mesmo, ele leu e anotou numa nesga do pensamento fugaz. Estava lá escrito algo parecido com um aforismo segundo o qual as pequenas oportunidades são muitas vezes o começo dos grandes em-preendimentos. Aí, ainda hoje reside e gagueja uma das grandes certezas do velho Demóstenes, o grego nascido gago, em Atenas. Em outras palavras, fisga-te como uma isca a cada anzol da tua vida que passa às vezes solertemente, vagarosamente. Duas chances dificilmente baterão à tua porta mais de uma vez. Finge-te um volúvel e segue com a primeira que aparecer. Depois, virão outras, muitas outras, como vieram, e todas prometeram a felicidade eterna, concreta, duradoura, que realmente aconteceu e eu dou fé pública.

Ainda na mesma biblioteca, ele depois encontrou um tal Arquimedes de Siracusa e, com ele, observou que poderia, quem sabe, um dia, também erguer o mundo. Os livros serviriam de estaca e o ponto de apoio seriam os professores daquela província de Girão. Pois deu certo!
Amanheciam dias ensolarados no tão amado pindorama. O lugar meio simples e, às vezes, prenhe de glamour era habitado por gente vinda da Síria, do Líbano, de Portugal e do sertão perdido do Ceará. Como eles vie-ram de tão longe… Meu Deus!

Todos, lá, eram amistosos, amigáveis, às vezes até carinhosos, e estavam sempre prontos para a ajuda na hora necessária, com raríssimas exceções. Uns logo se faziam compadres dos outros, muito embora a parcela brasileira fizesse a parte pesada do trabalho, uma vez que os europeus e asiáticos vieram para progredir e foram além… Ficaram ricos, uns; outros nem tanto.
Os pais e avós do menino faziam parte dos que trabalhavam para que os estrangeiros fizessem a sua fortuna. Nascera em berço qualquer. Em suma, era pobre já ao abrir os olhos, mas a fímbria dos sertanejos era tamanha que jamais alguém pensou em deixar de prosperar por meio do trabalho estafante no corte das seringueiras, ou até mesmo através dos estudos em boas escolas. Esta última foi a grande saída para o menino do dedo azul. Era preciso crescer e fazer bonito, para que a comunidade um dia o reconhecesse como um cidadão de prestígio… E não é que aconteceu!

Minha madrinha, vou ser grande e um dia vou voltar
E o povo até irá chorar
Depois de um samba meu
Irá então se desculpar pelo que aconteceu…
Assim cantava o Paulo Sérgio há uns quarenta anos. Com uma diferença: a madrinha do meninote, Eulália, é um amor de pessoa e a ela são dedicados estes escritos infanto-juvenis.
O dedo era azul, sim, porque estava sempre apontando rumo ao cume da última montanha invisível atrás da nuvem branca do horizonte perdido para além das estrelas. Batizado entre os católicos, tinha pai, mãe, avós, tios, padrinhos, vindos do Ceará e sempre por perto, aqui ou no Baturité das nossas almas felizes. Uns deles ao menino diziam Deus te faça feliz! Outros falavam Deus te dê boa sorte!  Alguns simplesmente louvavam com o Deus te abençoe!

Por isto, tudo deu tão certo. Deus comprou para si a causa, como pregam os modernos. A luz própria veio com a força de um planeta estilo Júpiter. Não. Não se tratava de um asteróide qualquer desses que morrem e se abespinham no buraco negro da via láctea. O moleque sangue bom tinha tino e foco desde os primeiros tempos de escola, apesar de passar pela primeira infância entre o céu e a terra, aos cuidados de um médico e de umas duas ou três curandeiristas. Benziam-no a Maria Néo, a Maria Rita e a Maria Figueiredo. Marias!… Tinha de dar certo… Usavam ramos de vassourinha, mucuracá, tipi e pinhão roxo. Diziam-nas iluminadas pela divina luz de Deus.

Em verdade, até os dois anos ou durante toda a primeira infância, perseguira-lhe o quebranto colocado por uma diva de saias rodadas que tinha chamego medonho com o pai. Dizem que a mãe zelosa dera um bom banho e colocara talco no guri de três meses. Ele ficara nu sobre a cama a espernear de felicidade e saúde. Foi quando a descarada entrou casa adentro e apenas o achou bonito além da conta. Foi só. Por um período crítico ele correu risco de morte.

Lânguido. Exangue mesmo. Só o coro e o osso e a rama do pescoço.

Era amamentado regularmente e, ao fim e ao cabo de dois anos, depois de uma boa temporada tomando mingaus feitos a partir de uma batata chamada marupá, as fezes endureceram e o pescoço se aplumou abaixo da cabeça crescidinha. Estava a salvo. Veio a ser por mais de um ano o bem querer da família imensa, até a chegada de um mais moço, e outro e depois outra.

O pai, estivador, ao casar-se com a lavadeira, a mãe, trouxera de cortesia, para o guri mais novo, já, dois irmãos. Um deles era ainda um menininho. O outro não tinha mais que dez de idade. Eles entretinham o pequeno Zé empurrando-o pela casa afora sentado, confortavelmente, numa caixa de sabão zebu forrada de lençóis e cobertinhas, e com rodinhas de madeira, à moda de um carrinho de bebê… Coisa de gente sem muitos recursos, porque ser pobre já era uma arte.

Afora esses dois, havia mais duas moças que habitavam a vivenda desde criancinhas e passaram a ser as suas irmãs postiças. Vivia nos braços de uma e de outra, mesmo quando doentinho. Uma era a Regina e a outra, a Maria, esta, uma moça de talentos musicais e de uma valentia a toda prova.

Um dia, em passeio pela cidade amada, a Mariete Mortes da Costa fez comentário desinteressado:
– Ô Maria! Que menino bonito é este!
– Arre! Beije nos ovinhos dele que é pra espantar o quebranto. – Foi o que disse a moça pavio curto, lembrando o quanto tinha sofrido a família em busca da cura do bebê.
Além dos irmãos mais velhos, havia ainda o pai, a mãe e a avó cearense mais ranzinza e enfezada e ranheta e truculenta do mundo. Ela, certamente, é a responsável maior pela fímbria que se implantou no garoto desde a sua gênese mais primária.
Mas aí já são outros quinhentos…

*Autor de Janelas do tempo, livro de crônicas, de 2008; e O inverno dos anjos do sol poente, romance, de 2014, à venda na Livraria Nobel do Via Verde Shopping.

A Gazeta do Acre: