Um vagalhão repetido em quatro ondas gigantescas varrera-lhe o tombadilho sujo e repleto das tralhas próprias de quem pesca em mar alto. Só depois da borrasca, os cabos arremessados na água foram recolhidos a duras penas. O mastro principal permanecera intacto. A caixas com o gelo e os peixes estavam a salvo no porão da pequena traineira. Estava torto o leme a partir da base, mas as correntes, intactas. O motor agora roncava sozinho em meio à calmaria.
É assim a vida. Altos e baixos se revezam tornando o nosso cotidiano eternamente imprevisível e bom de ser experimentado.
Pescador solitário, tratava de arrumar o convés e a vida velha novamente redimida depois de tantos tropeços e infinitas tempestades que lhe desordenaram o coração hoje em frangalhos, ou prenhe de sabedoria. No entanto, como em Gonçalves Dias, não, não se morre de amor… Já não dá!
Amanhecera sol alto. É assim em algumas épocas lá nos trópicos. De acordo com os instrumentos, em algumas horas alcançaria o continente. Tinha sorte. Aos tantos anos, cabelos grisalhos, barbas brancas, estava ainda saudável, às vezes elegante, jovial, poeta galanteador e respirando ares que iam das regiões tórridas do oceano, às zonas erógenas de quem quer que fosse, desde que fosse de alguém que contasse enquanto parte da poesia eternamente dirigida ao belo sexo.
Naquele momento, cabia-lhe apenas pensar, primeiro, na entrega das três toneladas de pescado em um frigorífico no porto de Boston, o que lhe garantiria renda suficiente para uma sobrevida bem atrevida comendo e gastando do bom e do melhor.
Em anos anteriores, fizera fortuna e, hoje, apenas se preocupava com o pagamento dos dois empregados, em terra, e com as visitas semestrais à filha residente em Augusta, capital do Maine. Só.
Era agora a hora de meditar acerca do que de melhor poderia encontrar nas casas noturnas das cercanias da zona portuária da capital de Massachusetts. Certo é que, depois de um bom sono no apartamento da Lomasney Way, a peregrinação, como sempre, começaria pela simplicidade do Brooline e, mais tarde, seria encerrada na sofisticação da Warren Tavern, em companhia do belo sexo, é claro. Uma bênção!
Viera-lhe à mente, agora, uma imagem de há trinta e tantos anos. Eileen, de origem irlandesa, era o nome dela. Usava trajes vistosos e cabelos amarelo avermelhados, bem arrumados em coque no alto da cabeça. Era mesmo linda de viver e cheia de boça e elegância desmedida, notadamente quando temperada por um bom Duvalier.
A família de Eileen viera da Irlanda, em meados do século anterior e, ali bem próximo, construíra um solar de certa elegância em meio a um bosque urbano de alqueire e meio. O pai trouxera a esposa de quinze anos, ou menos. As cinco filhas já nasceram na América. Depois vieram-lhes uns tios e avós sobre cujos nomes nunca se ouviu falar. Eram apenas os O’Hara, depois transformados em extratores de madeira no Maine.
Do outro lado da rua, residia, num bangalô de três pavimentos, uma família vinda da Carolina do Sul. Raymond, o pai, descendente de antigos peles vermelhas, casara-se com Margie, das tradicionais famílias de fazendeiros do Sul, e tinham quatro filhos homens de aparência acima do comum em vista da miscigenação… Eram bem fortes de feições.
Um filho dava aulas de física em Augusta, no Maine, e os outros três se fizeram engenheiros, inclusive, um do ramo da pesca, o próprio.
É claro que o mais velho achou muita graça em Eileen O’Hara, a mais velha das vizinhas. E, como num encadeamento meio lógico, os mais novos foram se encantando pelas demais, em conformidade com as respectivas idades.
O segundo amor pouco rendeu e apenas frutificou por quase um ano. O terceiro foi até um pouco além. O quarto não passou de alguns encontros rocambolescos nos jardins de cá e de lá… Mas o dos mais velhos deu muito conteúdo para mexericos… O hoje Lobo do Mar rompeu para mais de seis primaveras em conluio amoroso com Eileen, uma moça educada, mas um tanto dona de si mesma e de quaisquer situações que se lhe apresentassem.
De início, o agora denominado Lobo até gostou do jeito autoritário da moça.
Acerca de um bar movimentado da zona portuária, um dia, ele deu uma pequena escapadela para satisfazer necessidades físicas. Rápido. Urinou e já voltou à mesa onde um sujeito de péssimo aspecto dizia algo mais ou menos assim:
– Como é que uma moça como você namora um índio grandalhão e desengonçado desse e me deixa aqui a ver navios. – E tentou beijá-la, ao que ela levantou e meteu-lhe um copo duplo de vinho tinto nas fuças do insatisfeito. Merecedora do aplauso de alguns a atitude da moça. Digna do riso de outros o paletó branco agora tornado cor de rosa ensopado e gotejante.
Em uma noite quente, depois do chamego nos bancos dos jardins O’Hara, Eileen disse:
– Você poderia comprar tijolos e telhas. Eu compro madeiras e equipamentos. Juntos, construiremos uma casinha aqui nos fundos da vivenda dos meus pais, criaremos filhos e netos e seremos felizes.
Quanta estultice! Ele não fora talhado para desempenhar funções tão dignificantes quanto a de pai de família. Certo é que não respondeu nem sim, nem não. Deu apenas o silêncio por desconversado.
Depois, em casa, ele disse à Margie:
– Mãe! Você já pensou um garoto como eu, hoje, aos vinte e quatro anos, casar-me com uma moça arrogante e cheia de si. Haverei de apanhar as cinco noites dos dias úteis, porque jamais levantarei a mão nem em defesa da minha honra… A não ser que me venha o pai ou os tios.
Muitos outros fatos denunciadores da valentia da moça ocorreram.
Enfim, eis que um dia, a bordo da traineira novinha em folha, El Lobo consubstanciava idílio pecaminoso com moça das redondezas. Pé ante pé, Eileen veio e flagrou os aventureiros em delírio carnal, aos gritos. Uma loucura!
Deu-se o dito pelo não dito e a pecadora escapou ilesa. Mas ele teve que dar explicações fajutas, incabíveis e cheias de reticências.
– Você nada entendeu. Apenas tomávamos uma taça de vinho, eu e ela, uma amiga dos tempos do colégio La Torre.
– Não se deve tomar vinho sem roupas. A não ser que os dois queiram se comprometer.
Já no píer, El Lobo deu as costas e Eileen, a um metro de distância, arremessou um tijolo com a intenção de lhe acertar a cabeça. Errou. A tijolada apenas atingiu as costas do infiel, de prancha.
Na carta de despedida, ele – cheio das razões que a própria razão desconhece – lembrou um aforismo usado pelos índios mais velhos segundo o qual a soberba nunca desce de onde sobe, mas cai sempre de onde subiu.
Simplesmente, o amor fraquejou, arrefeceu, ficou debilitado, indigente e, enfim, morreu de insuficiências básicas.
*Autor de Janelas do tempo, livro de crônicas, de 2008; e O inverno dos anjos do sol poente, romance, de 2014, à venda na Livraria Nobel do Via Verde Shopping.