A ameaça de escassez de água potável no planeta é uma realidade em muitas regiões, especialmente as mais áridas ou que sofreram graves desequilíbrios ambientais. Falar que tal cenário poderia se materializar na Amazônia, uma região com uma vasta rede hidrológica que abriga a maior reserva de água doce do planeta, soaria como algo irreal. Entretanto, a rápida ocupação da mesma a partir da década de 70, que já resultou na eliminação de cerca de 15% de sua cobertura florestal para a implantação de centros urbanos, empreendimentos industriais e atividades agropecuárias, torna esse cenário irreal em algo perfeitamente factível de se materializar em algumas partes da região nas próximas décadas.
A região leste do Acre poderá ser uma das primeiras partes da Amazônia brasileira a ter que conviver com limitações hídricas se nada for feito para mudar o preocupante cenário de destruição e degradação ambiental de seus remanescentes florestais e da sua rede hidrográfica. Dos 21,3 mil km² que já foram desmatados no Acre, e que equivalem a aproximadamente 13% de seu território, 15 mil km² foram realizados nesta região. Soa um exagero, não fosse isso um fato, constatar que o leste do Acre equivale a apenas 22,5% do território do Estado, mas concentra cerca de 70% de todo o seu desmatamento.
A principal ameaça de crise hídrica no leste do Acre deriva do que acontecerá com o Rio Acre no futuro. Ele é o principal rio da bacia que drena cerca de 90% desta região (a outra bacia é a do Rio Abunã) e em sua área de influência vivem cerca de 450 mil pessoas, ou aproximadamente 60% da população do Estado. A região leste é também a mais importante do Estado sob o ponto de vista econômico, representando cerca de 70% do produto interno bruto estadual. Uma grave crise hídrica terá, portanto, sérias consequências sociais e econômicas para todo o Acre e, possivelmente, para a região sul-ocidental da Amazônia.
O Rio Acre se constitui na principal fonte de captação de água potável para a maioria dos municípios da região leste do Estado, incluindo Rio Branco, e tem grande importância para os moradores ao longo de seu canal. Apesar do reconhecimento dessa importância e da necessidade de agir para conservar o rio, o que tem sido feito na atualidade parece não estar contribuindo para minorar as ameaças que pairam sobre o mesmo. Não dá para argumentar que o problema não é do conhecimento de todos. A maioria dos moradores da região é consciente dos problemas enfrentado pelo rio, o assunto é tema recorrente na imprensa local, e pesquisadores e até mesmo o Governo do Estado tem alertado para o risco que ele corre de desaparecer no futuro.
Um estudo realizado em 2011 (Piontekowski e outros) mostrou que das cerca de 11,5 mil hectares de área de proteção permanente (APP) do rio Acre em território acreano, aproximadamente 3,7 mil hectares (±32%) já foram destruídas. Dos oito municípios banhados diretamente pelo rio, em cinco a taxa de destruição da APP ultrapassa 30%, com destaque para Epitaciolândia e Rio Branco, que já eliminaram, respectivamente, 57% e 43% da APP do rio em seus territórios. É importante ressaltar que no caso do Rio Acre, as áreas de APP são sinônimo de mata ciliar. E a mata ciliar tem importância estratégica para a sobrevivência de rios localizados em planícies sedimentares recentes, como é o caso do Rio Acre.
Rios que correm em planícies sedimentares, ou seja, em áreas que se formaram a partir da deposição de sedimentos carreados pela água de áreas mais altas, como a que predomina na bacia do Rio Acre, tendem a ser meândricos, apresentando muitas curvas acentuadas em razão da erosão constante em suas margens pela ação da água, e mudam de curso com frequência, formando lagos em formato de meia lua. Esta erosão natural resulta da variação considerável do nível do rio em regiões com estações chuvosas e secas distintas. Na cheia, a água erode as partes mais baixas dos barrancos, que se tornam instáveis e desmoronam quando o nível do rio diminui na seca. Esta erosão, entretanto, é muito localizada e totalmente dependente do ciclo de cheia-vazante do rio.
A existência de mata ciliar em rios meândricos, além de diminuir a erosão natural em suas margens, serve como barreira para o escoamento de sedimentos (argila, areia, pequenos pedregulhos) para o leito dos rios, evitando o seu assoreamento (ou aterramento). Na medida em que ocorre o assoreamento dos rios, a frequência de alagamentos de suas margens por ocasião de chuvas intensa e localizadas aumenta. Além disso, áreas em planícies sedimentares desprovidas de proteção florestal (desmatadas) também são mais susceptíveis à erosão causada pelas chuvas e os sedimentos resultantes dessa erosão, além de aterrar pequenos igarapés, são lentamente carreados para os rios principais que integram a bacia hidrográfica.
O Rio Acre sofre de problemas decorrentes não apenas da destruição de sua mata ciliar, mas também do intenso desmatamento que tem acontecido na área que ele drena na região leste do Acre. A tabela que ilustra esse artigo reflete bem a influência dessas ações humanas sobre os valores das cotas mínimas (nível mais baixo) atingido pelo Rio Acre desde que estas informações começaram a ser coletadas no ano de 1971.
Entre as décadas de 70 (1971-1980) e 80 (1981-1990), o valor médio das cotas mínimas do Rio Acre diminui apenas 2%. Esse valor, entretanto, deu um salto para 16% entre a década de 80 e a de 90 (1991-2000), quando o desmatamento e a ocupação econômica da região leste do Acre se intensificaram. Entre a década de 90 e os anos 2000 (2001-2010) a diminuição da cota mínima chegou a 20%, um valor impressionante. Outro aspecto merece ser observado: a amplitude entre as cotas mínimas na década de 80 foi de ±1 m (2,98 m – 2,01 m) e na década de 90 de 0,85 m (2,49 m – 1,64 m).
Estamos nos aproximando da metade da década de 2010 e embora os dados não permitam maiores inferências, é preocupante o fato de a cota mínima do Rio Acre ter atingido 1,5 m em 2011, ano climaticamente normal, sem seca que pudesse virar manchete na imprensa. Será que a tendência de baixa nos valores da cota mínima do Rio Acre continua com a mesma intensidade?
Se isso estiver acontecendo, ao final da presente década a cota mínima média do rio poderá atingir, caso seja mantido o ritmo de queda, mais ou menos 1,65 m. Se a amplitude entre as cotas mínimas for, digamos, de ±0,6 m, isso significa que em algum ano nesta década a cota mínima do Rio Acre poderá chegar a ±1 m. Extremamente preocupante!
E se na próxima década (2021-2030) o ritmo de diminuição se mantiver, em algum ano do referido período a cota mínima do rio será de ±0,4 m. Continuando a ser pessimista, é possível, portanto, que em algum dia no período de verão amazônico entre os anos de 2031 e 2040 o leito do Rio Acre fique completamente seco em seu trecho que corta a cidade de Rio Branco. Parece distante? Nem tanto. São apenas 26 anos. Nossos filhos, incluindo os adolescentes e aqueles que já estão concluindo a faculdade hoje, e que tem vivo na memória o rio com águas correntes no verão amazônico, poderão ser testemunhas desse desastre. Será esse o nosso legado para as futuras gerações?
*Evandro Ferreira é engenheiro agrônomo e pesquisador do INPA/Parque Zoobotânico da UFAC