Ao Marcus Alexandre Médici Aguiar Viana da Silva
Chama-se Via da Felicidade, mas ela não é apenas minha, infelizmente. É de mais outras tantas almas infelizes que por aqui vivem e gravitam às topadas e escorregões, ou comendo poeira, ou matando ratos originários de um terreno baldio que foi projetado para ser uma área verde, este um nome bacana que escolheram para logradouros públicos destinados ao deleite… E que desfrute!
Antes de chegado a este pedacinho de chão benfazejo, houve por bem residir em vivenda adquirida pelos pais em cercania próxima, mas desassistida. Não sei se era um bairro ou um encadeamento de pessoas pobres misturadas às suas boas intenções.
Veio logo o verão e nós passamos a ir à praia. Mas chegou o inverno duradouro e cáustico, como é comum desde que a Amazônia foi implantada acima do trópico de capricórnio ou quase rente ao equador… A lama ia pelo meio da canela.
Naquele tempo, bastava ser amigo do alcaide, e nós o éramos… Uma carta manuscrita pelo meu pai estivador, já aposentado à época, fez apelo veemente e, já na segunda próxima, lá estavam os homens e as suas enxadas, picaretas, tijolos, cimento, areia e barro vermelho. Tudo foi feito em uma semana porque o prefeito libanês xapuriense era chegado do povo lá de casa, apesar de nunca termos votado nele, um ex-senador que um dia me presenteou com um paletó de linho cinza em tempos de formatura.
Hoje, não basta ser amigo dos maiorais. Eu até o sou e faço campanha em épocas de eleições. Voto neles a cada pleito porque os vejo enquanto grandes obreiros, notadamente, ao nível do social. O trabalho, segundo analiso, é de alegrar os olhos, em todos os lugares, menos na minha triste e feia Rua da Felicidade, Residencial Petrópolis.
Quando apareceu o projeto Ruas do Povo, por aqui todos nós nos alegramos muito. Com o advento do engenheiro verão a minha via infeliz seria beneficiada, mas não foi e talvez não venha a ser nunca, porque o plano não é destinado a beneficiar ruas de bacanas, segundo o meu amigo e mandatário mor, com quem aprumamos os músculos às seis da manhã em uma academia cheia de classe.
Aceitei o argumento, sim. Enfim, tudo deve ser feito em prol do social e eu sou um socialista teórico e prático meio abalizado segundo os ideais de Platão, Karl Marx e Jesus Cristo, porque os demais filósofos, todos, escrevem apenas notas de pé de página, como eu e como o Janine. (Só que este último, meu professor em tempos de doutorado, não pode saber que, da mesma forma que eu, ele também não vai muito além dos meros rabiscos acerca das graves ponderações dos pensadores acima citados.)
Aí, então, num sábado manhãzinha, fui em passeio aqui pelos bairros que circundam a minha viela parca. Andei pela Europa, pela Primavera, pela Mariana, Palmeiras e Paz, dentre outros logradouros onde os residentes estão entre a classe média e a média alta. Só bacanas.
É verdade, meu bom alcaide – o bom garoto de Ribeirão Preto e Ilha Solteira! – os arredores da Rua da Felicidade estão impecáveis. Tem até rede de esgoto. Um luxo só!
E eu desfiaria aqui um rosário de histórias deste meu pedacinho de chão, como as que seguem. Mas o espaço que me concede este diário é mínimo.
Então, o prefeito pescador não veio, não viu e se foi para uma pescaria no Seringal Iracema, onde nasceu. O prefeito bancário, substituto do homem da bengala, fez mais ou menos o mesmo, ou como faria o próprio Flaviano, um homem que nunca enganou a mim, mas a todos que o queriam enquanto prefeito por alguns anos. A ambição falou mais alto e o salário de senador urrava, gritava, uivava… Outros quinhentos!
Veio, então, um dos meus melhores amigos, quase um ângelus, em bom latim, hoje deputado federal eleito, inclusive, com uns trinta votos dentre os meus chegados de casa e os da casa da sogra, dona santinha, a íntegra…
Ângelus se fez administrador da urbe, para o meu orgulho. Aí foi que eu esperei com vontade mesmo. O homem é meu leitor assíduo há dois séculos. Cabra de confiança. Ou vai, ou racha, ou arrebenta a tampa da caixa. É agora ou nunca… Foi o que eu pensei em conjunto com os meus vizinhos tão infelizes quanto eu.
Certo é que nós o ajudamos a eleger-se novamente prefeito. O homem magro foi agraciado com o título honorífico de melhor prefeito do Brasil em 2012. Porém, dos trinta de existência, mais oito anos se passaram e nós, mais uma vez, ficamos cheirando a vara do batista que é pra limpar a vista – como diria o filósofo lá de casa, o meu estivador e pai dos melhores.
Por último, chegou a hora e a vez deste moço do interior de São Paulo – aluno de Jajá Salim! – sobre quem dizem maravilhas que são muito verdadeiras. Ele mediu e planejou e mensurou a rua umas três vezes ou mais; tanto que a trena enferrujou e nada foi feito depois de passados dois anos da sua estupenda administração… Tudo isto é verdade, eu registro e dou fé.
Doído é ver, da mesma forma que em anos anteriores, os homens que zelam os logradouros. Eles passam ao largo, lá na avenida, viram a cara com nojo, torcem o nariz rombudo e nem olham para o nosso porto solidão.
Daí, eu encontro a cozinheira morta de cansada aos trinta e poucos. É que ela já não aguenta tirar o barro seco ou molhado das áreas da vivenda cheia de estilo… Coitada da Net!
Em verdade vos digo – homem de Deus! – que quem paga o moço da faxina da nossa praça somos eu e o vizinho arquiteto. Nós o fazemos não porque somos limpinhos, mas porque gostamos das nossas vidas que perigam ante o fato de as cobras e outros venenosos adentrarem sem permissão as nossas residências… Quase nos comem vivos, apesar das dedetizações constantes. Bom é observar que a senhora dona mãe dos meninos daqui de casa, além de destruir os caramujos (transmissores de doenças) na base do sal, veio a se tornar uma exímia exterminadora de serpentes de todos os naipes usando desde o atear fogo até a paulada na cabeça da bicha… Ou é assim ou nós não escaparemos… Só não sei até quando!
Numa análise rápida e rasteira, há quatro vizinhos comerciantes ricos, cinco funcionários públicos da esfera federal, dois fazendeiros de posses, um arquiteto de sucesso, seis advogados, três engenheiros, três médicos e eu, um escritor de letras malacabadas. Todos saldam o famigerado imposto predial e territorial urbano a preços altíssimos… Seria talvez a hora de devolver em benefício os trinta anos que vimos pagando à prefeitura. São vinte e cinco residências apenas.
Pensando melhor ainda, aqui nesta corruptela sobrevive, ou supervive, uma classe média que pensa ter algum prestígio, mas não o tem, porque moureja em meio a buracos, lama, poeira, serpentes e roedores, apesar do uso diuturno dos melhores perfumes comprados quando das suas viagens anuais ao país de Charlie Hebdo.
Como dizia Tácito, historiador, orador e político romano, o prestígio aumenta com a distância. No nosso caso, ruim mesmo é saber quem tem mais importância, se nós ou os prefeitos, posto que a separação entre uns e outros aumenta a cada ano e a merreca continua a mesma.
Vinde a nós, Senhor Prefeito!
*Autor de Janelas do tempo, livro de crônicas, de 2008; e O inverno dos anjos do sol poente, romance, de 2014, à venda na Livraria Nobel do Via Verde Shopping.