A falta de legislação protetora permitiu a ‘biopirataria’ dos recursos genéticos brasileiros por centenas de anos. Um dos episódios mais contundentes e amplamente conhecidosde biopirataria foi o envio ilegal de sementes de seringueiras do Brasil para as colônias inglesas localizadas na Ásia. A entrada em produção de seringueiras originárias dessas sementes causou prejuízos massivos para o Brasil. O Acre, que no início do século XX contribuía com uma parcela considerável do orçamento nacional, passou, desde então, a ser uma entidade federativa totalmente dependente de recursos enviados pelo governo central.
Parece incrível, mas somente no segundo mandato do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso o acesso ao patrimônio genético e o conhecimento associado ao mesmo passou a ser regulamentado e, supostamente, protegido por meio da Medida Provisória nº 2.052, publicada em 29 de junho de 2000. Por questões legais, o referido instrumento jurídico foi reeditado mensalmente durante um ano, sendo, finalmente, perpetuado pela Emenda à Constituição nº 32, de 11 de setembro de 2001, em seu art. 2º.
A nova legislação determinou que o acesso ao patrimônio genético depende de autorização da União e que o seu uso, comércio e aproveitamento para quaisquer fins deve ser submetido à fiscalização, restrições e repartições de benefícios. Na prática, a nova legislação colocou o Governo Federal na função de ‘ordenador’ de todo o processo. E para cumprir o seu papel, ele criou o Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGen) para avaliar e aprovar ou reprovar propostas públicas e privadas de pesquisa e uso econômico do patrimônio genético e do respectivo conhecido tradicional associado. A criação do CGen demandou a indicação de dezenas de conselheiros, consultores, pareceristas e funcionários administrativos para ‘fazer a máquina andar’. Protocolos, normas e outras demandas típicas da burocracia tiveram que ser criadas para garantir um ‘harmonioso’ funcionamento do referido conselho.
O leitor com um mínimo de senso crítico já percebeu que a intervenção estatal para fazer cumprir a lei e proteger o nosso patrimônio genético teve como consequência imediata e direta a ‘burocratização’ de todo o processo. E onde os burocratas imperam, a ineficiência e a procrastinação se impõem. No início de seu funcionamento o CGen foi o paraíso dos burocratas, aqueles assistentes e chefes administrativos que, na falta do que fazer – na época não existia o Facebook – ficam criando exigências esdrúxulas para os usuários dos serviços públicos. Essa influência improdutiva e a desconfiança de que qualquer um que tentasse solicitar acesso ao patrimônio genético brasileiro era potencialmente um biopirata quase inviabilizou o funcionamento do CGen. Hoje a situação mudou um pouco, mas conseguir autorização para realizar pesquisas sobre usos de plantas em comunidades indígenas, por exemplo, ainda é um processo muito demorado e complexo que praticamente requer a assinatura do porteiro do prédio da Funai.
A verdade é que a normatização do acesso ao patrimônio genético e ao conhecimento tradicional associado, da forma que existe hoje no Brasil, inviabilizou avanços científicos nos ramos da biotecnologia e da etnobotânica. Uns poucos laureados – com bom trânsito no meio acadêmico, boa reputação científica e facilidade de acesso a financiamentos – e pesquisadores com personalidade caracterizada pela paciência extrema conseguem autorizações para realizar trabalhos. Lamentavelmente, entretanto, uma massa grande de estudantes e pesquisadores tem optado em se manter longe desse campo de atuação. Na maioria das vezes porque o tempo de espera pela aprovação das autorizações – incluindo alguns documentos que devem ser obtidos previamente à formalização do pedido junto ao CGen – supera os prazos de execução de pesquisas de pós-graduação e mesmo dos projetos financiados pelo CNPq e Capes, por exemplo.
O público em geral não sabe, mas se um pesquisador decide estudar, por exemplo, as plantas medicinais de uma determinada comunidade ele necessitará de uma anuência prévia por escrito da comunidade, com previsão da futura repartição de benefícios derivados da referida pesquisa. Ou seja, mesmo que o projeto não vise o desenvolvimento de um produto ou processo que resulte em algum tipo de retorno econômico, isso tem que estar especificado. Essa anuência deve ser anexada ao processo de solicitação de autorização protocolado no CGen.Ou seja, antes mesmo de iniciar o projeto, às vezes mesmo antes de obter o financiamento, o pesquisador deve investir tempo e recursos financeiros para visitar a comunidade e tentar convencer seus membros a assinar o documento de anuência. Óbvio que isso é uma dificuldade menor frente ao desafio que ele terá para convencer os potenciais financiadores de que ele está pedindo o dinheiro para fazer o estudo, mas que inicialmente ele não garante que o mesmo vai acontecer. Isso é uma desvantagem imensa quando se sabe que os financiamentos de projetos no Brasil são feitos via chamadas (editais) com critérios de avaliação nos quais os cronogramas de execução técnica e financeira são determinantes para a sua aprovação.
Felizmente existe no Congresso um projeto para simplificar o processo de acesso ao patrimônio genético brasileiro. Em junho de 2014 o Executivo enviou o Projeto de Lei 7.735/2014 com algumas mudanças que reputamos importantes. A anuência prévia, agora chamada de ‘consentimento prévio’ será exigida apenas para o acesso a conhecimentos associados a um determinado recurso que seja “identificável”, e quando já existir um “produto acabado” pronto para ser fabricado e vendido. O mesmo se aplica ao contrato de repartição de benefícios negociado com os provedores do material e do conhecimento associado. Essa medida contribuirá para agilizar o início de pesquisas.
A nova proposta, entretanto, tem falhas. Como a anterior, ela não tipifica ou penaliza os crimes associados à biopirataria. Ela também favorece o lado mais forte na negociação da repartição de benefícios ao limitar o retorno financeiro (royalties) aos detentores dos recursos e do conhecimento tradicional em 1% da receita líquida anual obtida com a exploração econômica de um determinado produto, valor que pode ser rebaixado para até um décimo por cento dessa receita. E a União é que terá a competência para decidir os valores.
A votação do Projeto de Lei 7.735/2014 deve acontecer por estes dias. Ele foi enviado sob regime de urgência e deverá ser examinado por uma comissão especial e pelo Plenário. Como tal, ele tem o poder de trancar a pauta de votações no Congresso, que neste início de legislatura tem outras prioridades. Por isso muitos temem que o mesmo será aprovado a toque de caixa, com o objetivo maior de destrancar a pauta de votações, sem maiores discussões. Não é um bom sinal.
*Evandro Ferreira é engenheiro agrônomo e pesquisador do Inpa/Parque Zoobotânico da Ufac