Foi no tempo em que o moleque arteiro e meticuloso, simplesmente, ouvia a conversa dos mais velhos e achava tal atitude a coisa mais normal do mundo. Em casa, os nossos cearenses falavam de tudo um pouco e, de vez em quando, vinha à baila o assunto política, não a partidária apenas, mas aquela que busca colocar pão sobre a mesa dos mais pobres.
Diziam eles que Xapuri tornara-se o único reduto da Amazônia ocidental onde a falência da borracha, praticamente, não havia afetado a vida dos seringueiros e a daqueles que viviam em torno do que era produzido nos seringais. Um deles acrescentava que o próprio general governador reconhecia que, se não fosse a Princesinha do Acre, nada de mais consistente haveria para fazer a economia regional funcionar, posto que, sem produção, os impostos deixaram de existir, porque nada havia para ser taxado.
Daí é que me vem à lembrança algo que deixou escrito Aristóteles, o pensador grego. Ele anotou, em algum lugar, algo parecido com um aforismo segundo o qual o reconhecimento envelhece depressa.
Depois de passada a época do governador general, o período de riqueza solitária de Xapuri foi esquecido. A pujança da cidade e adjacências passou a fazer parte do passado. Projetos dos governos estadual e federal deram algum incremento à economia dos municípios, como foi o caso da criação da estação experimental, órgão de apoio científico ao desenvolvimento da agricultura e da pecuária, notadamente em Rio Branco.
Não. Eu não sou um historiador. Também já não me agradam os artigos, sobretudo porque nem sempre é possível escrever as boas coisas que alguém deixou de fazer. Sou um literato e ficcionista de formação. Todavia, a ocasião não apenas pede, mas exige uma defesa intransigente de alguns fatores desconhecidos dos nossos líderes políticos tão afetos apenas ao presente e esquecidos de um passado que existiu, mas que dificilmente é lembrado pelos que deveriam fazê-lo.
Senhores! As dívidas para com Xapuri foram anotadas em bom pergaminho e é chegada a hora da cobrança.
Antes, a história deste pedaço de chão batido pelas botas dos caudilhos tem início em Xapuri; e isto já torna claro que a dívida histórica é um pouco anterior aos meus ancestrais cearenses tornados soldados da borracha cujos soldos também não foram pagos, uma vez que, hoje, também eles estão todos mortos.
Quando, ao canto do fuzil, a vanguarda dos heróis seringueiros estourou o quartel boliviano, em 1902, a revolução eclodiu e a ação enérgica dos nossos homens marchou tenaz contra o imperialismo do Bolivian Syndicate… Vencemos. Todos sabem.
Isto aconteceu em Xapuri, mas poucos dos nossos líderes atuais têm consciência de um fato já tão afastado no tempo. Como canta o Chico Buarque, hoje são apenas passagens desbotadas da memória das nossas novas gerações.
Os historiadores sabem, mas não o têm dito por aí, nas salas de aula ou debaixo das mangueiras. A produção da borracha extraída dos seringais localizados nas adjacências de Xapuri e Brasileia bateu todos os recordes brasileiros e tal feito não mais foi repetido por ninguém. Ainda somos donos das marcas históricas que geraram tantos dividendos financeiros para a República, que não conhecia a região, mas usufruía dos impostos escorchantes cobrados por um posto alfandegário instalado na Capital desde os primeiros tempos. Roubaram-nos, sim, porque os benefícios nunca por aqui chegaram.
Nos anos quarenta do século passado, enquanto as demais regiões do Acre sofriam com a miséria acarretada pela decadência da economia da borracha, Xapuri prosperava e exorbitava em pagamentos de impostos muito acima dos demais municípios.
Foi formado um pequeno grupo de empreendedores fantásticos. Eram dois portugueses e um libanês que fundaram, então, uma usina de beneficiamento de castanha cuja atividade empregou quase oitenta por cento da população urbana, àquela época na casa das seis mil e quinhentas almas pensantes e ativas.
Fazendas de gado e muares foram erguidas à custa da fímbria de estrangeiros que vieram, viram e venceram os obstáculos sem nenhuma ajuda dos favores oficiais da República. Cerca de dez engenhos foram instalados nas cercanias da cidade e o produto destes seguia direto para o consumo das pessoas nos mais longínquos rincões da Bolívia e do Peru.
Veio então o tempo dos empreendimentos agropecuários que pouco ou nada deixaram para o Acre, a não ser um rastro de ódio e vingança contra os amazônicos que queriam prosseguir vivendo do que lhes outorgava a natureza.
Na senda deste período caótico, enfim, aparece a figura emblemática de Chico Mendes a lutar contra a devastação da Amazônia. Como prêmio aos esforços ingentes do líder seringueiro, veio a ele a notoriedade internacional.
Rio Branco, a Capital, vivia então um período de administradores pífios e Xapuri passou a ser conhecida mundialmente. Para os que vinham de outros países, a antiga Princesinha do Acre era tida como a principal cidade desta província de tantos enganados.
Para cá acorriam pessoas de todo o mundo. Xapuri se tornou uma marca que passou a ser vendida, a bom dinheiro, no exterior, a preços altíssimos. Todavia, os dividendos auferidos com toda essa fama e esse prestígio foram muito bem utilizados, sim, em Rio Branco. De uma hora para outra, projetos e projetos que tinham como bandeira o movimento ecológico iniciado em Xapuri justificavam a construção de prédios, praças, avenidas, parques, pontes, dentre outros logradouros que fizeram da Capital, finalmente, uma cidade agradável de se viver.
Coube então a Xapuri alguma pouca tinta e umas placas de metal nas casas e lojas que pertenceram aos grandes pioneiros libaneses, portugueses, sírios e nordestinos do Brasil que muito bem mereciam uma outra espécie de homenagem.
Poucos perceberam, mas foram estes estrangeiros que, por três ou quatro décadas, a partir de Xapuri, levaram o Acre nas costas, quase literalmente, porque os seus impostos eram muitíssimo vultuosos se comparados àqueles cobrados aos comerciantes das outras praças estabelecidas por estas terras.
É claro que a cobrança pressupõe a obrigação do pagamento da dívida, posto que lidamos, hoje, com acreanos que buscam saber o valor do reconhecimento… Assim esperamos.
Convém observar que lutaremos com a mesma energia, como nos versos do Chico Mangabeira, porém, agora, pacíficos, mas não passivos, uma vez que a ideia de fazer barricadas e impedir o trânsito na BR-317 não é de todo irresponsável. Assim – e só assim! – poderemos nos fazer perceber pelos que desconhecem o fator histórico do nosso passado de lutas, suor e sangue.
Certamente, nós queremos receber o que nos é devido; e por isto o cobramos. Talvez haja algum interessepor parte de quem de direito em saudar a dívida. Resta observar que, segundo um adágio francês, o que perturba o reconhecimento dos serviços que prestamos é que o orgulho daquele que os presta e o orgulho de quem os recebe não conseguem acertar o preço do serviço. Nós podemos e sabemos como fazê-lo, com certeza.
Avante, revolucionários do meu tempo!
*Autor de Janelas do tempo, livro de crônicas, de 2008; e O inverno dos anjos do sol poente, romance, de 2014, à venda na Livraria Nobel do Via Verde Shopping.