Eram aqueles tempos em que a boa semeadura se fazia com muito afeto e carinho, na certeza de que os extensos períodos de colheita farta logo viriam, como vieram, na graça de Deus. Virtuosos como eles só, as melhores previsões foram feitas. Aí, o verão enrijeceu os caules, o inverno regou as plantas, a primavera fez florar tudo com muita singeleza e, já no outono seguinte, apareceram frutos tão doces e tão saudáveis que o amor recrudesceu e muitos novos ciclos vieram para aumentar a riqueza espiritual que ainda hoje muito viceja.
Hoje, dizem que os objetivos traçados pelos mais inteligentes passam logo a ser desafios a serem superados, metas a serem cumpridas, realidades que serão traduzidas na mesa farta e na felicidade tranquila dos bem aventurados. É verdade e dou fé.
– A vida é dura! Acostume-se aos varadouros escorregadios! Enfie isso na cabeça! E pronto!
Era o que dizia o patriarca a subir e a descer os barrancos íngremes, carregando nas costas a história de um povo e o desejo de ver os seus em postos tão avançados como ele jamais conseguiria vislumbrar, mesmo nos melhores sonhos das noites de verão embaladas pelo canto da coruja lá no olho da castanheira de quarenta metros de altura. Virgem dos céus!
Na alma, nas trouxas e no matulão, eles trouxeram consigo, desde o sertão seco de cada dia, o estilo nordestino de criar gente para ser gente, desde a mais tenra idade, trabalhando nos afazeres domésticos, cumprindo as tarefas escolares, aprendendo o catecismo, indo à Missa aos Domingos e pedindo aos mais velhos as bênçãos rogadas a um Deus beneficente que lhes presenteou com bastante êxito pela vida afora.
Hoje, lágrimas são vertidas porque a gratidão é tamanha que não cabe no peito e pipoca pelos olhos afora; isto, sem falar na bênção que foi conviver em meio a uma comunidade onde a maioria das pessoas fazia o bem sem olhar a quem, simplesmente.
No início de tudo, coisas interessantes já começaram a acontecer. Deus estava de sobreaviso e prestava muita atenção às ocorrências e às pessoas em uma certa casa da cidade princesa.
O menino de letras nasceu de boa cepa. A família lhe queria ensinar tudo, inclusive aquilo que não sabia, como tocar piano ou fazer versos que só bem depois passariam a ser desenhados a partir da janela da casa da rua das castanholas, com os olhos arregalados para o céu noturno ou diurno à procura do futuro escondido por trás de uma estrela qualquer. Voa, moleque, voa!
As primeiras letras foram emendadas ainda aos cinco de idade de uma forma muito especial. Em seis meses de aprendizado, já lia de carreirinha folhetos de cordel editados no nordeste do Brasil e vendidos, na livraria, pelo moço do saxofone porque chorava. Não seria diferente, posto que em casa contava com uma irmã professora a dar aulas particulares para uma turma de filhos da pequena burguesia citadina, afoitos e nada afeitos aos afazeres escolares. Lá, ao lado dela, ele se postava meio de carona, muito tranquilamente, vendo o reboliço da moçada arisca na sua pouca idade e aprendendo só de fixar os olhos nos lábios sem batom da alfabetizadora de alma límpida e bela. Uma bênção!
No ato da matrícula no grupo escolar, ele surpreendeu a todos. Havia a possibilidade de inseri-lo entre as crianças do primeiro ano atrasado. Então, a diretora mandou que ele lesse as palavras marquês de Calabar, da historieta do Gato de Botas. Ele leu todo o primeiro parágrafo quase sem tomar fôlego e, depois, ainda recitou o estribilho do Hino Acreano.
Por isto, foi matriculado no grupo das quarenta crianças que cursariam o primeiro ano adiantado… Era como se houvesse ganhado o grande prêmio de uma competição qualquer. Uau!
Com a caligrafia acanhada, a pedido da professora, ele escreveu o nome no quadro preto com giz branco. Aquela era a calçada da fama toda sua. No teste de leitura – primeiro dia de aula – a ele não foi permitido ir além do parágrafo inicial. Tinha um nível bem acima do comum.
No primeiro dia, a mestra morena bela e enérgica até as tripas conseguiu fazer o teste com apenas um terço dos alunos. No dia seguinte, ela foi muito prática. Enquanto alguns iam à mesa da professora, o menino de letras ia de carteira em carteira tomando a lição dos demais. O resultado foi que antes do fim da aula a tarefa estava concluída.
Cumprindo recomendação dos pais, estava sempre atento aos mínimos detalhes. Era tranquilo, sossegado e de poucas falas, o que logo repercutiu na escola. Alguns o taxaram de lerdo. A professora o achou concentrado. E acertou.
A maioria das crianças era bem quieta e ficava vendo ou tinha medo de dois meninos que faziam a professora morena e bela gritar a plenos pulmões.
– Não pulem em cima das cadeiras! Não conversem! Não briguem! Chamarei aqui, hoje mesmo, as suas mães…
Foi aí que o menino de letras percebeu que algumas crianças tinham certas facilidades no aprendizado da leitura e da escrita. Uma boa parte deles, no entanto, apresentava dificuldades extremas e mal gaguejavam algumas poucas palavras, notadamente os mais arteiros e, talvez por isso, taxados pela professora de rudes. Certo é que as diferenças passaram a ser percebidas e os resultados futuros foram um tanto catastróficos para aqueles cujas famílias não davam prioridade à sua educação. Uma pena.
Enquanto boa parte das outras crianças de sete anos vivia perambulando pelas ruas da pequena cidade, ele ficava em casa e os via passar ao longe em busca do jogo de petecas, algo terminantemente proibido pelos pais sertanejos ranzinzas. Tal fato, é claro, o tornou desavisado com relação ao comportamento dos demais.
A camisa branca de cambraia fina e a bermuda de casimira azul deveriam ser usadas por toda uma semana, ao término da qual o uniforme era lavado.
Numa segunda-feira, com o uniforme limpo e cheiroso, no recreio, ele ficou a apreciar a molecada no seu corre-corre natural, quando um deles, um pouco mais velho, o desafiou a alcançá-lo na carreira. Desafio aceito, os dois se foram correndo pelo campo afora.
Inexperiente com relação às astúcias e truques dos demais meninos, ele não viu que o garoto à sua frente avançou por entre capins amarrados uns aos outros. Já no primeiro obstáculo, ele tropeçou e caiu feito uma pamonha sujando a farda.
Felizmente, naquele dia, em casa, a mãe foi compreensiva e apenas lhe quis arrancar as orelhas, isto, com muito carinho, é claro, à moda dos sertanejos.
Em verdade, o moleque ossudo das canelas finas, aqui apelidado menino de letras, fez tanto que fez que conseguiu angariar a simpatia de parte considerável da cidade princesa que ainda hoje o admira aqui e ali.
Ficaram incrivelmente bem colocadas as palavras de um moço do futebol. Ele um dia disse que o moleque acanhado era ruim de bola, mas bom de escola. Bacana!
*Autor de Janelas do tempo, livro de crônicas, de 2008; e O inverno dos anjos do sol poente, romance, de 2014, à venda na Livraria Nobel do Via Verde Shopping.