Para ela eu sequer fiz um samba sincopado, ainda. Nem o farei, talvez. Também, pudera, nem músico eu sou. Pensando bem, agora mesmo observo que, dentre os pares nascidos do córtex de uma mãe, a minha, entre meiga e inteligente e renitente e ranzinza, ninguém foi perspicaz o suficiente para provar que as notas musicais mais parecem letras de um alfabeto muito antigo. Ah, como eu queria poder tocar um instrumento.
Vi, pois, os deuses da antiguidade empunharem arpas, cítaras e trombetas que reverberavam dobres e redobres musicais através das leves encostas do monte Olimpo. Um tempo divino improvável que povoa a cabeça dos mitólogos e dos artistas que se inspiram nos clássicos da mais antiga Grécia. Eu próprio me vi envolvido com as ninfas do templo de um Apolo rústico e beberrão. Andava aí pela segunda década.
Davi, o filho de Jessé, há quase dois mil anos, compôs os versos e, principalmente, a melodia dos salmos que ainda hoje ecoam pelos templos cristãos e judaicos do mundo inteiro. Foram mais de vinte séculos que sumiram na poeira do tempo embala-dos por notas musicais de tirar o fôlego. Tais grandes maravilhas têm se perpetuado pelos milênios a fio e, em boa parte dos casos, foram, antes, poemas depois musicados por menestréis adoradores da lua, à beira da calçada, ou por grandes maestros das filarmônicas que encantam o planeta. Os eflúvios desta nobre arte encantam os mais velhos e deixam em êxtase esses mais frenéticos das nossas novas gerações.
Quão maravilhosa é a música!
Todos lembram Miguel Unamuno y Jugo, o espanhol. Um dia ele escreveu algo muito parecido com a assertiva segundo a qual, entre as graças que devemos à bondade de Deus, uma das maiores é a música. Afianço-vos, pois, com amplas garantias, que a melodia é tal qual como a recebemos. Numa alma pura, qualquer música suscita sentimentos de pureza. Com os impuros, ocorre o contrário.
E foi desta forma que ocorreu com a minha musa inspiradora. Fez-me embebedar pelos acordes de uma canção estilo balada e, como não toco um instrumento, passei a fazer meros versos e a compor crônicas toscas com alguma qualidade somente vista por ela. Ah, o meu amor!
Um dia, percebi que dela se apoderara a sensibilidade musical desde o vir ao mundo. Nascera angelicalmente melodiosa, em compasso de valsa clássica, ou com a cadência de um samba de Ataulfo.
O andar lhe empresta, ainda hoje, a destreza de quem flutua sem sequer tocar com os pés as leves nuvens mais próximas, ou apenas se deliciando ao toque ameno de um raio solar furtivo que, sorrateiramente, lhe tenta roubar tanta beleza, sem conseguir tal intento, em vista do ar soberano que lhe dá leveza à alma.
Em suma, não sei se me apaixonei por essa nereida, esta minha diva encantadora, ou se a música é que se apaixonou por mim, embora não lhe alimente de esperanças. E eu, como não podia tocar e muito menos compor sonatas, passei a escrever sob o embalo de um dos clássicos, sempre, como Mozart, o predileto. Bom mesmo é que meia dúzia de amigos meus ao redor do mundo dizem gostar das minhas crônicas enfadonhas e dorminhocas.
Por isto é que creio e replico a mensagem segundo a qual a música de qualidade inspira o bom texto, este mesmo, que eu não sou capaz de fazer. Os sonidos de uma bela melodia infundem em mim algo que me remete à boa poesia, não aos meus toscos versos, mas ao repertório de Vinícius de Moraes, o poeta supimpa que uniu a razão ao pensamento, ao sentimento e à boa música dedilhada ou teclada ou soprada por quem quer que seja o parceiro, inclusive esse excepcional Jobim, aquele que deu nome ao aeroporto.
Em umas certas alturas da viagem, eis que me sinto mais inspirado, preenchido por uma força brutal que me obriga a ouvir a voz interior. Surpreendo-me, então, assobiando ou cantarolando algo como O Coro dos Escravos Hebreus, da ópera Nabuco, de Verdi. Pois é nesse compasso que eu sinto mais que nunca a necessidade de dedilhar um piano Pleyel ou tocar um vio-lino Stradivarius.
E tudo chegou de repente e fez a vidinha pacata fluir com mais leveza, com mais encanto, como quando eu compus um texto em versos mal-acabados e tão imensamente amados pela filha querida cuja alma voa pra lá e pra cá, entre um coração que parte e outro que fica morrendo de saudades e cheio de amor para dar…
Sarah é o nome real da filha distante e querida por quem os meus sinos dobram e a frouxa poesia flui. Clara Manhã é o nome poético. Coisa de Deus é saber que hoje ela toca aquele mesmo instrumento de teclado retumbante, neo-moderno, do Jean Michel Jarre, com algum ou muito exagero, é claro. Sou pai.
Foram para ela dedicados os versos toscos que seguem:
PARA CLARA
MANHÃ SORRINDO
Fui eu quem te fez assim
De rosa, mostarda ruge e carmim.
Encomenda a Deus pra ser parte de mim
Em dias de sol, em noites de cetim.
Amo-te com um coração pulsante
A saudade cala o peito arfante
Aflora um turbilhão de sentimentos
Foram-se as noites de tormentos
As nossas almas vivem momentos
Que são o eterno em cada um de nós.
Já não lembro a época fria.
Chuva branda que caía
Inundava o meu jardim.
Temos vivido épocas felizes
Olhando sem ver os velhos deslizes
Que partiram corações.
Deverá ser sempre bela
Essa minha cinderela
Olhando da minha janela
Gravura linda em vasta aquarela
O meu amor agora sorriu.
Cara de anjo dormindo
Flor que desabrocha sorrindo
Céu azul que vai se abrindo
Meiga e bela, te amo demais.
Lembro então os meus amores derretidos por uma musa, a literatura, ainda na adolescência. Andava de braços dados com ela, às voltas, em praça pública, feito o exibicionista que busca mostrar o que de melhor é seu. Depois, ouvi um assobiar límpido e um beijo soprado ou atirado ao ar. Consegui apará-lo. Vinha da filosofia. Apaixonei-me, então, por, talvez, dez voltas ao redor do sol. Fizemos filhas lindas a quem chamamos dissertação e tese. Foi aí que tudo se tornou enjoativo e veio o divórcio.
Aí, na primeira fila da minha opereta vida vulgar, naquela bela noite, postava-se uma pós-adolescente chamada prosa poética. Dela eu me enamorei e ela me prometeu amor eterno. Brindamos o momento e viveremos eternamente um afeto frutificante, extasiado, cheio de viagens colossais, rimas bem metrificadas e figuras de linguagem de todos os matizes. Temos ouvido, então, desde a primeira vista, canções que trazem bons eflúvios a uma paixão bem resolvida. Eis a minha inspiração maior. Em verdade, a música sempre embalará os grandes amores.
Oh, musa! Preciso, pois, dizer-te que uma boa canção ou balada soam como se estivessem trazendo a mim de volta a felicidade que nunca partiu. Daí, acredito estar indo sempre em busca da fortuna e da alegria de viver em paz desde muito cedo exatamente porque sou fiel amante da música. Observo, ademais, que tudo acontece como se eu mesmo tivesse algum pacto de fidelidade com as mulheres que nunca amei. É assim mesmo.
*Autor de Janelas do tempo, livro de crônicas, de 2008; e O inverno dos anjos do sol poente, romance, de 2014, à venda na Livraria Nobel do Via Verde Shopping.