Convenientemente, ele aprendeu a ficar na crista da onda numa atitude de defesa contra as intempéries do destino magro que pode lhe estrepar de encontro a um rochedo ou recifes de corais. Não sairia ileso, de forma alguma. Talvez aleijado ficasse… Nadou de braçadas nos desvãos da maré alta, posto que, àquela altura, já ninguém era de alguém, ou vice-versa. Respirou forte a maresia que tornava os pulmões inflados em vista da atividade física soberba. Surfou leve e acima de qualquer suspeita. Ainda sabe cair e depois se alçar para cima da prancha. Navega muito bem. Nesse ínterim, viu da vida de tudo um pouco e confessou, pasmo, que muita coisa o deixara estupefato. O humano é realmente demais!
Permanecia aqui ou ficava lá, na belacap, exageradamente, quase aos borbotões de tanto prazer e de muito gostar. De um certo tempo em diante, passou a observar que os exageros são estágios infantis da inteligência. Imaturidade pura. Basbaquice plena. Viu, então, o comportamento das crianças e dos selvagens e ainda mais se convenceu disso. Gente atônita envolvida na poeira do tempo. O século era outro e a santa inquisição queimava hereges na fogueira das vaidades terrenas em becos escusos do bairro Papoco.
Leu Cervantes, o iconoclasta daquele século quase esquecido. Foi ele quem lhe disse que a santidade fingida só faz mal a quem a usa. Nenhuma das moças das redondezas é exatamente a santa que os pais pensam, e muito menos a tresloucada que os vizinhos proclamam ou desejam. Ninguém é prostituta por acaso.
Foi mais ou menos aí que a conheci.
Meiga, linda, fogosa e de parar o trânsito era a Florbela nos seus saltitantes dezoito aninhos. Nascera em berço quase esplêndido, prateado ou bordado a ouro cravejado de turmalinas. Chique mais ou menos, mais para mais que para menos. Mantinha entre as colegiais, comparsas suas, segredos de liquidificador e comportamento em alto estilo, até um pouquinho depois do estrepitoso baile das flores no clube bacana da cidade. Depois, tudo veio à tona no seu mar de malemolência, ginga e sacanagem.
E foi aí que a pá virou. O seu mundinho colorido passou a ser preenchido com amantes, dinheiro, sexo, drogas, rock’n roll e samba na Gamboa carioca. Uma beleza! Só que os pais sequer podiam desconfiar das extravagâncias carnais gerais da danadinha.
A juventude a escorrer por entre os dedos dos pés e a vidinha afoita pululavam pelas alcovas de aluguel e através das demais particulares, aqui e ali, sempre em companhias sortidas. Motéis, escapadelas, madrugadinhas no Igarapé Santa Maria, escoltada por pessoinhas de ambos os gêneros, cheias de estilo e vagabundagem, nua em pelo até seis da manhã. De dar água na boca.
– O que dizer ao papai? Ora essa! Dormi na casa da amiga. Molhada estou porque a piscina estava um mega barato.
Entrementes, em outra redondeza angular, garotos meigos e singelos e visivelmente alegres tinham comportamentos moderninhos e falinhas melífluas. Viviam estrepitosamente entre basilares e fumacês do tamanho da rosa de Hiroshima. Faziam par ou namoravam meninos do bairro contíguo. O barulho era enorme nas madrugadas regadas a doses generosas de caipirinhas de limão bravo.
Na praia beira rio, eles usavam sungas que queriam se esconder em reentrâncias do corpo. Eram meio escandalosos e viviam aos gritos, talvez, em comemoração aos seus namoricos com os moços da margem oposta do caudal. Uns os viam como intoleráveis. O analista caboclo os tinha enquanto alegres até demais da conta. Segundo eles próprios, tudo era uma loucura!
Eis que o tempo fugiu por entre os dedos das mãos calejadas do poeta de araque. Em termos particularmente pessoais, muito haveria ainda a ser feito, como disse o caudilho. Então, o observador da vida alheia, que não vos escreve estas mal traçadas linhas, cheio das boas intenções, decidiu por viver outros ares, buscar conhecimentos em mundos longínquos, com o objetivo de melhor dar palpites, agora cientificamente fundamentados, aqui e acolá. Enfim, partiu!
De volta à taba, depois de alguns anos em estudos avançadíssimos, o analista seringueiro viu que o mundinho fugaz dos jovens acima descritos havia sido mudado como que da água para o vinho. Eles já não eram eles mesmos. Mudanças incríveis houveram por bem ocorrer nas suas vidas antes tão barulhentas.
Agora, em meio a louvores e cânticos estilo gospel, eles já não fumavam maconha, nem bebiam cerveja e, acima de tudo, já não eram tão estrepitosos. A moça tornara-se apóstola-pastora-obreira-não-sei-das-quantas. Fizeram-se tão virtuosos que passaram a desconhecer muitos daqueles que antes lhes tinham alguma amizade. Daí, já falavam em quebrar imagens, em salvar-se, e diziam que a pedofilia era prática comum a todos os membros da igreja romana mais velha. À passagem da procissão da Madona, disseram tratar-se de um bando de seguidores ridículos atrás de um pedaço de pedra. O fanatismo lhes houvera aflorado à pele.
Depois, bem depois, o analista viveu décadas, quase séculos, de sonhos leves e reflexões profundas. Perdeu noites no vão afã e delírio que é o vir a entender tal fenômeno. Muito esperneou e passou a observar o fator segundo o qual, para tornar-se santo, há todo um processo que pode demorar cem anos até a canonização, este o primeiro passo para a glória de ser santificado, o que não é o caso daqueles heróis do asfalto ou da beira rio.
Sabiamente, o observador procurou guarida junto aos mais experientes mundanos do lado de cá do hemisfério. Manteve contato com algumas almas penadas e de ambulantes por esta galáxia afora. Concluiu que, se o céu estiver lotado desse tipo de madalenas arrependidas, muitos haverão de resignar-se ante a barulheira do inferno. Será até preferível fumar o cachimbo da paz no reino das infinitas labaredas.
Claro está que o arrependimento é humano. É até preconizado pelos religiosos de mais densidade. Problema maior é que há muitos a quererem ir para o céu, urgentemente, e tornar-se superior aos demais pensantes. Outros passam a quebrar imagens de argila como se estas tivessem alguma culpa ou pudessem produzir provas contra eles no dia do apocalipse. Esses humanos mundanos e extremados nas suas manias, de repente, se tornaram santos do pau oco. Fica medonho!
Aí, então, o analista doido foi avisado pelo Nietzsche que, telepaticamente, passou mensagem de e-mail segundo a qual o fanatismo é a única forma de força de vontade acessível aos fracos.
São tão poucos os que conseguem ler algo que lhes desanuvie as mentes obscurecidas pela falta de instrução. Não se tem o endereço da História escrita de forma crítica. A aculturação age livre, leve e solta. Já bem dizia o Millôr para quem o homem é o único animal que ri e é rindo que ele mostra o animal que realmente é.
Saudações de um herege feito nas coxas.
*Autor de O INVERNO DOS ANJOS DO SOL POENTE, romance, à venda nas livrarias Paim e Nobel.