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Sonhos e vidas intensas em tempos caóticos

Naqueles dias de verão seco, o  vento ricocheteava ladeira  acima e levantava serpentes de poeira, apesar de o sol ainda não haver jogado luzes no ocidente. Fazia frio intenso nos trópicos e aquele, certamente, seria mais um dia nublado depois de uns cinco outros em que, nas madrugadas lúgubres, alguns até morreram de frio, como em anos anteriores, em vista da modéstia das casinholas toscas que os abrigavam em meio aos campos e à floresta densa.

Incrível demais é que, naquela madrugadinha, o meu fantasma predileto, Astrogildo Berimbau, trajava-se de umas calçolas justas e um casaquinho curto verde cana à moda dos toureiros espanhóis. Eu não conseguia ver as sapatilhas, posto que as almas do outro mundo nunca mostram os pés.

Em meio aos redemoinhos, o meu pluft para consumo próprio tagarelava que o sobrinho havia se metido em camisa de sete varas. Era dado a confusões ao contato com o belo sexo. A vida se tornara um completo caos, agorinha, um pouco antes de completar a sexagésima volta do ponteiro maior. Mas todos os fatos eram apenas a repetição do que lhe ocorria desde que familiares, amigos e vizinhos passaram a julgá-lo enquanto o sujeito mais bonito dos sopés dos Andes amazônicos.

Fazendo uma análise mais acurada à parte, as coisas do espiritual são mesmo assim, quase incompreensíveis. Só hoje entendo como é que um homem nascido no Pernambuco e morto na Espanha possa ter uma família extensa de parentes num recanto tão inóspito quanto este. Compreendo agora. Basta lembrar que os turcos de cá são oriundos de uma Ásia remota. Os portugueses nossos vieram de uma Europa longínqua. Os próprios nordestinos levavam até dois meses de viagem para vir dar com os costados neste chão batido de suor, sangue, lágrimas e glórias.

O Astrogildo Berimbau, toureiro bem arrumado e agora visto apenas da cintura para cima, passara a me fazer um relato acerca da vidinha sacana desse tal sobrinho neto que saíra completamente a ele, na forma e no conteúdo, em vista das escapadelas sempre à francesa, com as cuecas nas mãos. O medo da minha alma penada predileta era que uma bala houvesse por bem alojar-se, exatamente, entre os cornos do safardana que prometia feudos intermináveis às moças a quem a poesia fazia tocar o coração através dos tímpanos embevecidos e débeis. Coitadas!

Quando as coisas ficavam mais sérias por aqui, ele escapava para Belém, onde morava uma tia velha, viúva e rica. Aí, os problemas de cá se repetiam lá. Desta maneira, por seis meses ele ficava em uma cidade e os outros seis, na outra. E foi assim que ele conseguiu concluir um curso de engenharia com excelente desempenho. Pasmem!

Então, já não era apenas um conquistador barato. Tornara-se caro, caríssimo. O janota modernizado agora dedilhava admiravelmente bem ao violão, portava diploma de nível superior e sugava de um emprego federal. Antes, dizia poemas de cordel repetido e deixava deslumbradas as muito prováveis vítimas da picardia de alto nível. A partir de então, piorou muito, melhorou o método e passou a dizer sonetos de Bilac e Vinícius, além do Augusto dos Anjos, para quem a mão que afaga é a mesma que apedreja.

Aos quarenta e poucos, foi forçado pelo próprio pai a casar-se com moça da alta sociedade burguesa destes cafundós amazônicos. Havia interesses mútuos, seis seringais na jogada, e a candidata a nora era belíssima e à altura da beleza do nosso herói, segundo ele próprio.

Conforme a tradição e em vista do dote ansiosamente esperado, a família da infeliz organizou festa cara nos salões da nossa elite tupiniquim, comes e bebes na largura da boca,além de uma celebração digna da bela catedral erguida por Dom Júlio, o bispo.

No baile, como não podia ser diferente, logo depois da uma da madrugada, o patife foi dado por sumido e a moça caiu em desespero, aos prantos. Embarcado na rural bicolor, ele houvera sumido em companhia de uma diva de saias justas cujo marido não se importava com os volteios da esposa amada. O nosso herói traiu já na noite de núpcias, mas, mesmo assim, antes das dez da manhã, ao chegar ao sobrado nupcial ricamente decorado, não teve apenas o perdão concedido, mas quase foi ungido a santo mesmo antes de morrer.

Foram felizes por duas semanas, até a noite da sua esticada comprida aos saraus do papoco.  Daí em diante, como manda a tradição e o figurino da corte, passaram a apenas tolerar um ao outro, e vice-versa.

Em uma tarde ensolarada de um agosto qualquer, dois anos depois, foi largado com uma mala e duas mochilas rotas na frente da casa da mãe, agora viúva rica de mais um herói morto.

Novamente solteiro, a colheita veio a ser farta na seara das moçoilas de dezesseis a dezoito anos. Agora a poesia já era ainda mais elaborada, ao nível do Buarque.

Num desses dias, então, ele fez análise extremamente abalizada. Com algum pretexto, o formidável cinquentão passou a dizer aos quatro ventos que as mocinhas mais novas têm uns cheiros difíceis para um homem maduro que sustenta a libido a partir do uso de estimulantes sintéticos de alta potência. São cheiros localizados, aqui e ali, mas que vão de encontro aos estímulos artificiais.

Houvera se amasiado com uma ninfeta de dezenove primaveras e estava, já, cansado da vida ao lado de uma meninota inculta e bela, mas sem os ditos cheiros mais excitantes.

Foi numa dessas noites cáusticas, que ele cogitou romper com a bela mocinha e se aproximar de uma diva de saias rodadas que contava um pouco mais de quarenta voltas. Segundo o tirano, talvez essas fossem bem melhores, devido aos cheiros dos perfumes próprios das damas de certa idade e, ainda, em vista da experiência sensorial e cultural da maioria delas.

Depois, em sonhos inconfessáveis, ele deixou transparecer ao tio do outro mundo algo bem incoerente:

– Pensando bem, essas moças de quarenta anos são todas cheias das neuroses vindas de casamentos com gente deteriorada igual a mim. – Palavras estas saídas da verve do bon vivant mais desequilibrado desta terra surpreendente.

Mais tarde, ele prosseguiu:

– Pensando bem, onde estou?

O Astrogildo mostrava sinais de estupefacção e deu por encerrada a sua homilia:

– Não interessa o quanto o queiram, não interessa até onde conseguiram ir, as pessoas nunca poderão ser nada mais do que elas próprias. Em suma, não se tem o que se quer. Tem-se apenas o que se pode. E por assim dizer, quem não pode com o pote não pega na rodilha. E é tudo.

Já à beira das sessenta voltas o gajo imponderável ainda não se localizara em relação ao amor e à vida com as mulheres, sejam elas feias ou bonitas; ricas ou pobres, cheirosas ou não.

Este poeta amarfanhado, então, foi para casa pensativo. Os homens são todos iguais, até na maneira de gostar das mulheres. E é essa a nossa única superioridade. Um homem, quando ama uma mulher, adora-a. Uma mulher, quando ama um homem, aceita-o. Um homem vê todas as mulheres na mulher que ama. A mulher esquece os outros homens.

Por isso, uma centena delas tem a mais absoluta certeza de que eu as entendo plenamente. É fato. São os ossos da poesia trôpega que faço.

*Autor de O INVERNO DOS ANJOS DO SOL POENTE, romance, à venda nas livrarias Paim e Nobel.

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