Depois de tudo, ela se virou de lado, na poltrona do avião, remoeu velhos pensamentos e conseguiu fazer parar o cérebro latejante, por um segundo, para observar que, de tudo, não tinham sequer sobrado cinzas e muito menos chamas. Estava em meio ao caos dos condenados à solidão perpétua. Esmorecera de si própria. Já não cria no destino dos bem-aventurados que vivenciam o amor a toda prova. O pé d’água desceu a ladeira em caudal e o barraco desabou.
Refletiu e meditou, como se tal fosse possível. Daí ela passou a algumas ponderações em larga escala. Oh, Deus! Como os fatos são tão pensados e tão remoídos por essa gente desiludida!
A humanidade tem inventado e reinventado fórmulas mágicas e cada vez mais complexas de maneira a sempre estar buscando viver mais confortavelmente. Idealizaram o fogo e fizeram com que ficassem mais moles as carnes consumidas no bom sentido, é claro. Imaginaram a roda de forma a tornar bem menor o esforço no transporte de objetos pesados, como as mulheres dadas a reclamações. Descobriram a tesão e o coito passou a ser apenas uma forma de alívio das libidos em fogaréu. Desvendaram o amor sobre quatro rodas, molas paralelas e ar condicionado às quatro da manhã. Conceberam a tevê de forma a provocar-nos a tesão por meio de filmes pornográficos e eróticos. Arquitetaram o computador que nos ensinou a fazer sexo à distância sem a necessidade de corpos quentes que se roçam e se consomem em labaredas horizontais ou verticais ou tridimensionais. E tudo foi ficando mais fácil, posto que volátil. A vida pegou mais gosto em vista de tantas traquitanas utilizáveis em quaisquer posições.
Então, uns e outros, provavelmente insatisfeitos com a felicidade da superior maioria dos mundanos, passaram e compor uma infeliz fórmula para viver o mais desconfortavelmente possível e sofrendo das dores mais atrozes posto que são exatamente aquelas que não sentimos na carne; as dores do amor, que são bem diferentes das dores do parto atravessado. Vi, pois, que os modernos, parece-me, se apaixonam todos os dias, até por si próprios. Uma imbecilidade da cor do pecado e da idade da Terra. Meu Deus!
Ao invés de melhorar, tudo piorou sensivelmente. A afeição virou moeda de troca e troco. Em tempos de loucura, os meios para se conseguir auferir dividendos financeiros usam o amor mórbido e as paixões avassaladoras na construção dos cafajestes, gigolôs e parasitas de toda espécie.
Voltemos, pois, à nossa heroína do meu melodramático conto da Rapunzel que deu para o primeiro tabaréu.
Dias depois dos acontecimentos um tanto trágicos, então, ela me contou que, em Lausanne, Suíça, dividira aposentos na Place du Port, número onze, com uma austríaca de um pouco mais de duas dezenas de janeiros.
Numa descrição meio insólita, o protagonista do dramalhão parecia ter saído de um conto de fadas medievais, ou de um rendezvous da Praça Mauá. Apareceu-lhe durante vertigem, translúcido e belo como um príncipe escandinavo, de armadura tesa e espada em punho, montado em cavalo andaluz castanho claro e pedrês. Ficara atônita ante a visão do demônio, sim. O sujeito era o sonho de qualquer adolescente úmida e quente feito o agosto dos trópicos. Era só encostar de leve e o fogaréu já subia. E foi o que aconteceu ainda na primeira folga dos pais desavisados para quem a ninfeta perdia a noite em pensamentos acerca do sexo dos querubins e serafins. Só que esses tais anjos, na vida de carne e osso, são os mais safados possíveis. Virgem dos céus!
No concreto, na realidade, na penumbra do motel, à luz do sol fraco ou na claridade latejante da boate, tratava-se de um pilantra de primeira ordem e de marca e modelo entre os melhores do mundo. Top de linha.
Como em Terezinha, do Chico:
(…) O terceiro me chegou
Como quem chega do nada:
Ele não me trouxe nada,
Também nada perguntou.
Mal sei como ele se chama,
Mas entendo o que ele quer!
Se deitou na minha cama
E me chama de mulher.
Foi chegando sorrateiro
E antes que eu dissesse não,
Se instalou feito um posseiro
Dentro do meu coração. (…)
Trajava jeans importado de Miwalkee e cabelos lustrosos em gel de Gôa, com trunfa na frente e rabo de cavalo em tranças louras ao vento na parte de trás. Os tênis Nautic brancos teriam vindo na bagagem da sua última viagem a Portland. Roubara-os, talvez. A jaqueta bege, de couro de antílope, tinha corte exclusivo segundo o mandrião. A camisa by Hugo Boss e as jóias caras completavam a indumentária. Pense num sujeito bem-acabado. Mas ladrão matreiro e mentiroso escorregadio.
Ela o viu e logo se apaixonou. Coitadinha. Estava no decorrer daqueles trinta segundos únicos da vida durante os quais o humano faz ou comete as besteiras que mais estigmatizarão a alminha imbecil para todo o sempre, feito tatuagem em bunda gorda.
A moça teria vindo de Innsbruck, Áustria, e lá vivera uma paixão que quase lhe fez desfazer-se do sentido do viver. Transferira-se para a Suíça objetivando enfiar-se nos estudos acerca da história da arte, na Universidade de Lausanne.
Em um dia de inverno, então, a austríaca Gertraud-Marian Sbolitz desfiou o seu rosário de lamentações acerca de um amor nunca achado e jamais recuperado por culpa da vileza do homem a quem, aos dezessete anos, entregara os pontos cardeais e o cartão de crédito do pai ourives judeu rico e bem instalado na vida.
Cento e oitenta mil francos suíços foi o montante que o tabaréu puxou da moça. Parte ela gastou com ele através do cartão e a outra metade ela roubou da conta do pai e passou às mãos do aproveitador.
Depois de tudo, ela ainda quis ser feliz e, por telefone, disse que estava pegando o carro para ir viver com o safardana, ao que ele respondeu:
– Não vá. Nunca mais hás de me ver. Estou em Roterdã de partida para o Brasil. Dane-se!
Algumas modernosas, hoje, reinventam a cafajestada e pregam algo parecido com uma bandeira de luta forçada segundo a qual não convém deixar que, depois do assobio da paixão, apenas eles se aproveitem delas, das suas paixonites melosas e do seu amor infantil. Correto, segundo consta, é que elas se aproveitem deles também.
Durma-se com um barulho desses. Assim caminha a humanidade. Felizes são os que agem premeditadamente. Não é ético, mas esse tipo de planejamento é que, segundo observamos, pode levar os tolos a pagarem a conta.
Saudações a quem tem bagagem. Sugestões a quem nasceu sem escrúpulos, o que não é o meu caso.
*Autor de O INVERNO DOS ANJOS DO SOL POENTE, romance, à venda nas livrarias Paim, Nobel e Dom Oscar Romero; e na DDD / Ufac.