Num daqueles dias mornos de outono, o homem exausto levou a mão à testa e de lá verteu suor em bicas. O campo vasto de capim gordura serviria, mais tarde, para a confecção de colchões de dormir para aquela gente sem vintém e sem cobre. Aos seus cuidados, também ficava uma área de terra onde era criado algum gado que não lhe pertencia. Dali, ele retirava, a golpes de terçado, as ervas daninhas que prejudicavam o pasto e a alimentação dos animais. Era dura a vida do herói mais anônimo de que se tem notícia desde que o mundo é mundo. Um pai.
Era tardinha, mas o sol ainda castigava a moleira e a pele rústica do caboclo. Havia muita tristeza e indecisão no semblante carregado. A esposa viajara para outros mundos havia dois dias apenas. Grávida, fora vítima de um susto. Uma cobra caíra sobre a tábua em que lavava as roupas da família e, como sequela, ocorreu-lhe uma hemorragia drástica que lhe ceifou a vida jovem e a do seu novo bebê.
Ademais, algo talvez ainda mais inquietante martelava a cabeça do homem moreno claro, baixo, de cabelos crespos e atarracado em músculos pujantes, e uma grande vontade de encarar, de frente, todos os problemas que lhe surgissem, fossem de qual ordem fossem. Era destemido a partir da medula.
Do casamento agora desfeito pela ocorrência trágica, ficaram dois meninos. O mais novo não contava mais que um ano e meio. O mais velho já tinha sete de idade. Daí a cinco noites, depois da missa de sétimo dia, seria o homem simples o responsável principal e único pelo que de bom ou de ruim viesse a acontecer às suas crianças tão amadas. Isto era deveras perturbador.
Chegou o dia. Depois da celebração e da bênção do padre, o homem simples colocou o filho mais novo no braço e deu a mão para o mais velho. Saíram rumo a um aposento humilde alugado a preço baixo.
Estavam atadas redes maiores e uma menor, esta última entre as outras duas.
Na primeira noite, os dois meninos dormiram a sono solto. Tinham vindo do sítio distante e estavam exaustos.
Pela manhã, ainda madrugadinha, o homem humilde e desajeitado fez um mingau e o deu ao mais novo. O que sobrou ficou para quando este chorasse ou sentisse fome. De quebra jejum, o mais velho comeu pão embebido em um café ralo, e ficou por ali admirando o negrume do telhado de zinco muito antigo do barracão dos anos dez do século anterior. O pai fechou a porta à chave e se foi para a faina diária de sol a sol.
O homem triste voltou ao meio-dia, repetiu a ração para as crianças e, mais uma vez, se foi para o eito.
No outro dia, tudo se repetiu. Todavia, mais ou menos no meio da manhã, o mais novo começou a chorar um pranto doído de saudades da mãe morta. E o choro já se prolongava por mais de uma hora. Uma pena.
Foi aí que uma das vizinhas ouviu aquela lamúria infantil. Não se conteve. O coração falou mais alto e a apiedada moça foi bater à porta que, felizmente, naquela manhã, encontrava-se aberta.
A visão não agradou. As lágrimas vieram-lhe aos olhos e ela, sem muito pensar, alcançou a rede e dali retirou o menino mais novo. Deu a mão ao mais velho e os levou para a casa que era contígua ao aposento onde estavam as crianças. Deu-lhes um bom banho com sabonete e os colocou sentadinhos na sala da casa. Ela sequer conhecia o pai das crianças e temia pela reação do mesmo.
Pontualmente, ao meio-dia, o pai rumou para casa. Só que, antes de chegar à vivenda humílima, tinha que passar pela casa vizinha, onde viu as suas duas crianças sorridentes e aos cuidados daquela moça morena bonita como ele jamais havia visto. Depois de muitos dias, felizmente, ele veio a sorrir reconhecido a Deus por tão grande graça haver sido alcançada sem que ele sequer o pedisse.
A moça estava à meia idade, mas ainda não completara a terceira década. Era bela. Tinha olhos castanhos, cabelos longos ondulados, roupas simples e hábitos modernos. Era prendada. Sabia ler de carreirinha e escrever em letras muito bonitas. Bordava, fazia tricô, crochê, macramê, e costurava vestidos para os mais abastados da cidade. Costumava passear de braços dados com as outras moças do lugar. As descendentes sírias, libanesas, portuguesas e nordestinas bem cuidadas eram tão bonitas quanto ela. Era feliz na sua vida humilde, naquela cidadezinha que respirava ares de prosperidade.
Aquela era a década barulhenta de 1950. A comunidade se divertia em folguedos e grandes bailes. A borracha já não dava tanto dinheiro, como outrora. Mas a usina de beneficiamento de castanha fumegava por todo o dia e até à noite. Dali vinha a riqueza daquele rincão. Eram felizes nas suas relações coletivas. Cultivavam os jardins da cidade principesca com muito carinho. Coisa de Deus.
Num fim de tarde, casaram-se, enfim, sob as bênçãos de um padre italiano de nome Felipe.
O mais velho dos meninos foi morar com os avós paternos a pedido destes. O mais novo ficou sob os cuidados da mãe que recentemente lhe fora bem arranjada pelo pai.
Vieram, então, tempos de cuidados com a saúde do guri, que era um tanto frágil em vista da rudeza dos tempos. Deram-lhe o tiro seguro, remédio contra lombrigas. Também a ele foi receitada a pílula do mato, para purificar o sangue. Veio um purgante de sal amargo e, em pouco tempo, já estava o guri vermelho como um pimentão, com a intervenção de São Sebastião e as bênçãos de Deus.
Diligente e cuidadosa para com o futuro dos seus, a mãe carinhosa o matriculou na escola de primeiras letras. Concentrado e tranquilo, facilmente o menino logo aprendeu a emendar as palavras e as quatro operações matemáticas. O curso primário foi concluído em não mais que quatro dezembros.
O grupo escolar era gratuito, mas a mãe diligente via mais qualidade no colégio das freiras, pago. Foi aí que, um dia, ela se postou à porta da casa onde estava hospedado o governador Lino em visita à cidade principesca. Antes mesmo da sesta e logo depois do almoço, ele veio e assinou um papel através do qual uma bolsa de estudos foi concedida a todos os filhos. Ela desenhava o futuro com as mãos mais firmes que Deus já viu neste mundo.
Com a presença do governador libanês, este, filho da cidade, um dia, ele recebeu o diploma do curso ginasial. Naquela noite, lá no mural da divina providência, as freiras afixaram dez provas relativas às dez disciplinas todas com a nota dez. Nenhum aluno daquela escola jamais fez isso, em tempo algum. Ele começava a fazer a sua história de homem exemplar.
Veio o tempo em que o rapazola serviu ao exército. Depois, a vinda em mudança para a capital. Vieram um vestibular, um curso de Direito e a aprovação em alguns concursos públicos. Estabelecia-se, aí, a marca da vitória que sempre o acompanhou.
Em dias que já vão distantes, o pai homem simples tombou. O filho mais novo foi tornado procurador federal da República com todas as honras que um dia lhe projetou uma mãe postiça que nunca deixou de pensar no futuro dos seus.
Certo é que os bons exemplos foram dados e copiados pelas novas gerações do clã. Hoje, temos visto o menino mais novo como o nosso irmão mais velho, um dos marcos que deram rumos mais coerentes às nossas vidas.
Que Deus o proteja, agora e sempre!
*Escritor, autor do romance O INVERNO DOS ANJOS DO SOL POENTE, à venda nas livrarias Nobel, Paim e Dom Oscar Romero; e também na DDD / Ufac.