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De sonhos dantescos o poeta acordou

sonho
Talvez aquele poeta de meia pataca tenha conseguido, já, alguma maturidade pensante, embora ainda não se dê por vencido. Está muito longe da oitava década, a dos reis filósofos, de Platão. Mas é oportuno observar que a idade não poupa ninguém mesmo. Como as árvores antigas, todos vão morrendo, fisicamente, de cima para baixo, ainda que velhos pensamentos regurgitem e teimem em pular do barquinho grisalho para fazer parte de um escrito menor como este.

Céus!… Quase o poeta se apaixonou pela undécima vez.
Para Aristóteles, o filósofo grego, os céus enviam mensagens importantes aos homens adormecidos, embora, para que o sonho tenha significado, seja preciso que os olhos, sob as pálpebras fechadas, não estejam voltados para a esquerda nem para a direita, mas para a frente, o que costuma ser difícil de se conseguir. Na verdade, a vida, ou a passagem por ela, só terá valido a pena se se estiver sempre buscando sentidos dignificantes para as ações. O óbvio, então, será caminhar com quem sabe marchar, ou vice-versa, olhando sempre pra frente. Muitos logo aprendem a seguir caminho com os bons.

Ó cupido abespinhado!… Dela ele até esqueceu o nome.
Então, o vendedor de ilusões olhou para trás e viu do túnel a abertura da entrada, lá atrás, bem pequenina. Vislumbrou a humildade. Viu o grande José Luiz Sigrist, professor de filosofia, pós-doutor em Bolonha, Itália, aos setenta e oito anos, do alto da sua dignidade de metro e oitenta, nos corredores da Academia, a colocar o braço sobre os ombros do aluno e dizer ainda ter muito a aprender com aquele caboclo metido a escritor. O versejador atônito queria aprender a ser mais humilde. E aprendeu.
Certa vez, no entanto, à espreita estava um burrico a querer ouvir da alma rica em rimas –  às vezes lúcidas  – explicações sobre como navegar, porque navegar é preciso, sempre, como na toada portuguesa. Observação enfática fez o poeta tresloucado. Disse ele:
– Ora, irmão! Nunca fui dado a ouvir atrás das portas. Não por virtude, mas porque, realmente, não quero saber o que pensam de mim ou, para ser mais exato, o que dizem ao meu respeito, o que quase sempre é a mesma coisa. Posso imaginar as opiniões desagradáveis, pois somos aquilo que os outros precisam acreditar que somos. Por isso, nossa reputação está sempre sofrendo alterações drásticas, refletindo não apenas mudanças específicas em nós, mas tão somente uma mudança no estado de espírito dos que nos observam.
É claro que ele entendeu muito pouco, ou quase nada, em virtude das banhas que lhe envolvem o espírito vegetativo. E o bardo caboclo continuou quase que em monólogo muito doido com os seus moinhos de vento quixotescos. Horda de mentecaptos.
Aquele era um tempo em que muitos pensavam coisas escabrosas sobre o sonhador de pássaros. Diziam que os seus projetos e escritos, em geral, eram todos exclusivamente pessoais, e não viam que os caciques daquela tribo acanhada não o chamavam para fazer coisa alguma. Nem para fumar o cachimbo da paz.
Então, ele ficou preso por oito anos numa masmorra sala branca. Enjoou as teorias. Mordeu o pescoço da filosofia de onde tirou sangue espesso. Ficou louco. Passou a ler a ficção hispano-européia moderna de Carlos Ruiz Zafón, notadamente em A Sombra do Vento. Viu que, ademais, não faria sentido pedir  aos patriarcas e matriarcas da casa cinzenta, de pires na mão, o favor da bênção desgraçada que seria conviver com gente tão altaneira. Estes jamais concordariam com a mãe morta do vate, nem com os seus irmãos, que ainda o que-riam – e querem – muito bem.
Outros sanguessugas viam o livre pensador apenas enquanto um estorvo teórico vivo, e muito vivo, que teimava em apontar aos hipócritas o caminho da verdade; a verdade que dói. Por isso o colocaram em claustro ou na geladeira, como dizem os modernos.
O utopista de meia idade aprendeu a andar modestamente, de olhos baixos, para não tropeçar e não ir ter com as fuças no chão da sua história vulgar. Não. Ele não via a necessidade de se pavonear ou de se preocupar com o efeito que pudesse vir a causar nas outras pessoas. Era como era. No interior daquele seu espírito insondável, havia uma luz pequenina que se dizia dele, e tão somente dele. Era a tal luz própria que os cometas e asteróides não têm. Aprendeu ele também alguma auto-disciplina, o que o leva, inclusive, ainda hoje, a não falar demais, apesar dos circundantes assim o exigirem. Só em alguns parcos momentos a verdade, como o vento da friagem, bate-lhe o rosto e reclama a defesa intransigente.
O poeta insano e provocador percebia, sim, aqueles tantos que sentem dificuldade em olhar algumas pessoas nos olhos, porque aí viam apenas egoísmo, cobiça, medo ou bajulação. Triste memória.
Em verdade vos digo que nós recebemos o nosso lugar no tempo, assim como recebemos nossos olhos. Fracos, fortes, claros, estrábicos, a escolha não depende de nós.
Aquela era, verdadeiramente, uma época vesga, caolha feito Luiz Vaz de Camões. Percebia ele, então, que, felizmente, quando vários olhos vêem tudo distorcido, nada lhes parece estranho, e só uma visão nítida será considerada anormal.
O senso crítico afiado do formador de opinião observava a formação tosca a que os nossos moços e moças estavam sendo levados quando lhes distribuiam diplomas de nível superior antes que eles começassem sequer a pensar o racional equilibradamente. Cruzes!
Ele ia adiante e via que, naturalmente, o mercado de trabalho não poupa ninguém. Quem sabe tem que provar a si próprio e aos demais, ou irá para o limbo dos desesperados que buscam um lugar ao sol da meia-noite. Quo vadis? Onde ides?
A crise de competência daquele período levava lideranças profanas a distribuir cargos e comendas entre fantoches e meirinhos despreparados, semi-alfabetizados, que quase colocaram o ensino superior em marcha ré.
Certa vez disse ele acreditar que, na maioria das instituições públicas de ensino superior, as figuras principais raramente se encontram. Em parte, por opção. Quanto menos se encontrarem, menor a probabilidade de inconveniências. Um, aí, não dirá ao outro que a sua democracia está bêbeda e intolerante ao amparar aqueles que desconhecem a verdadeira ciência, nosso fim e nosso meio, aquela que busca a felicidade para todos através da competência real e comprovada. Convém até mantê-los razoavelmente distantes, porque isso aumenta a importância dos intermediários que podem correr de um lado para o outro fazendo intriga e politicanalhice.
E, um dia, o manobrista de palavras foi levado ao debate com um burocrata despótico. Construíram o seu primeiro inimigo. E construíram outros… A verdade, então, surgiu brilhante. E ele, como os antigos, passou a acreditar que as vitórias em discussões são inúteis. Às vezes, são apenas espetáculos sem cor. O que é falado sempre provoca maior cólera que o silêncio. Debates assim não convencem a muitos. Além do despeito que uma vitória desse tipo provoca, há também o problema do vencido. O derrotado, mesmo que chegue a compreender que está lutando contra a verdade, sofre porque o seu erro é publicamente exposto.
Em uma paráfrase frágil ele fazia citação grandiosa: Vigiai e orai, irmãos, pois não sabeis quando será chegado o dia ou a hora. E acrescentava pontuando que a loucura dos inteligentes é sempre maior que a dos medíocres. Em outras palavras, nenhum relacionamento deverá ser tão marcadamente criminoso quanto o da aranha com a mosca.
Decepcionado com o andar trôpego da carruagem, ele arrematou de forma sarcástica:
– Antes que eu desça das árvores e lá em cima deixe os meus ir-mãos macacos se divertindo com a sua alforria relativa, atirarei dardos infectados e fezes tardias na cabeça desses  tantos réus que teimam em me fazer inocente… Apodrecemos, sim, juntos, mas desunidos, perversos e  impiedosos…
Hoje, enfim, ele é feliz.

*Escritor, autor do romance O INVERNO DOS ANJOS DO SOL POENTE, à venda nas livrarias Nobel, Paim e Dom Oscar Romero; e também na DDD / Ufac.

 

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