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Jamais recuperarão o meu paraíso

Choro
Xapuri está deteriorada como nunca vi. Além da alagação, um vento varreu qualquer resquício de atitude por parte do dirigente municipal. Se as pessoas em particular investem alto nos seus projetos pessoais, o poder público esnoba a população e sumiu há um mês.
Então…
Anos 40 do século anterior. O moleque arteiro e meticuloso, simplesmente, ouvia a conversa dos mais velhos e achava tal atitude a coisa mais normal do mundo. Em casa, os nossos cearenses falavam de tudo um pouco e, de vez em quando, vinha à baila o assunto política, não a partidária apenas, mas aquela que busca colocar pão sobre a mesa dos mais pobres.
Diziam eles que Xapuri tornara-se o único reduto da Amazônia ocidental onde a falência da borracha, praticamente, não havia afetado a vida dos seringueiros e a daqueles que viviam em torno do que era produzido nos seringais. Um deles acrescentava que o próprio general governador  reconhecia  que, se não fosse a Princesinha do Acre, nada de mais consistente haveria para fazer a economia regional funcionar, posto que, sem produção, os impostos deixaram de existir, porque nada havia para ser taxado.
Daí é que me vem à lembrança algo que deixou escrito Aristóteles, o pensador grego. Ele anotou, em algum lugar, algo parecido com um aforismo segundo o qual o reconhecimento envelhece depressa.
Depois de passada a época do governador general, o período de riqueza solitária de Xapuri foi esquecido. A pujança da cidade e adjacências passou a fazer parte do passado. Projetos dos governos estadual e federal deram algum incremento à economia dos municípios, como foi o caso da criação da estação experimental, órgão de apoio científico ao desenvolvimento da agricultura e da pecuária, notadamente em Rio Branco.
Não. Eu não sou um historiador. Também já não me agradam os artigos, sobretudo porque nem sempre é possível escrever as boas coisas que alguém deixou de fazer. Sou um literato e ficcionista de formação. Todavia, a ocasião não apenas pede, mas exige uma defesa intransigente de alguns fatores desconhecidos dos nossos líderes políticos tão afetos apenas ao presente e esquecidos de um passado que existiu, mas que dificilmente é lembrado pelos que deveriam fazê-lo.
Senhores! As dívidas para com Xapuri foram anotadas em bom pergaminho e é chegada a hora da cobrança.
Antes, a história deste pedaço de chão batido pelas botas dos caudilhos tem início em Xapuri; e isto já torna claro que a dívida histórica é um pouco anterior aos meus ancestrais cea-renses tornados soldados da borracha cujos soldos também não foram pagos, uma vez que, hoje, também eles estão todos mortos.
Quando, ao canto do fuzil, a vanguarda dos heróis seringueiros estourou o quartel boliviano, em 1902, a revolução eclodiu e a ação enérgica dos nossos homens marchou tenaz contra o imperialismo do Bolivian Syndicate… Vencemos. Todos sabem.
Isto aconteceu em Xapuri, mas poucos dos nossos líderes atuais têm consciência de um fato já tão afastado no tempo. Como canta o Chico Buarque, hoje são apenas passagens desbotadas da memória das nossas novas gerações.
Os historiadores sabem, mas não o têm dito por aí, nas salas de aula ou debaixo das mangueiras. A produção da borracha extraída dos seringais localizados nas adjacências de Xapuri e Brasileia bateu todos os recordes brasileiros e tal feito não mais foi repetido por ninguém. Ainda somos donos das marcas históricas que geraram tantos dividendos financeiros para a República, que não conhecia a região, mas usufruía dos impostos escorchantes cobrados por um posto alfandegário instalado na Capital desde os primeiros tempos. Roubaram-nos, sim, porque os benefícios nunca por aqui chegaram.
Nos anos quarenta do século passado, enquanto as demais regiões do Acre sofriam com a miséria acarretada pela decadência da economia da borracha, Xapuri prosperava e exorbitava em pagamentos de impostos muito acima dos demais municípios.
Foi formado um pequeno grupo de empreendedores fantásticos. Eram dois portugueses e um libanês que fundaram, então, uma usina de beneficiamento de castanha cuja atividade empregou quase oitenta por cento da população urbana, àquela época na casa das seis mil e quinhentas almas pensantes e ativas.
Fazendas de gado e muares foram erguidas à custa da fímbria de estrangeiros que vieram, viram e venceram os obstáculos sem nenhuma ajuda dos favores oficiais da República. Cerca de dez engenhos foram instalados nas cercanias da cidade e o produto destes seguia direto para o consumo das pessoas nos mais longínquos rincões da Bolívia e do Peru.
Veio então o tempo dos empreendimentos agropecuários que pouco ou nada deixaram para o Acre, a não ser um rastro de ódio e vingança contra os amazônicos que queriam prosseguir vivendo do que lhes outorgava a natureza.
Na senda deste período caótico, enfim, aparece a figura emblemática de Chico Mendes a lutar contra a devastação da Amazônia. Como prêmio aos esforços ingentes do líder seringueiro, veio a ele a notoriedade internacional.
Rio Branco, a Capital, vivia então um período de administradores pífios e Xapuri passou a ser conhecida mundialmente. Para os que vinham de outros países, a antiga Princesinha do Acre era tida como a principal cidade desta província de tantos enganados.
Para cá acorriam pessoas de todo o mundo. Xapuri se tornou uma marca que passou a ser vendida, a bom dinheiro, no exterior, a preços altíssimos. Todavia, os dividendos auferidos com toda essa fama e esse prestígio foram muito bem utilizados, sim, em Rio Branco. De uma hora para outra, projetos e projetos que tinham como bandeira o movimento ecológico iniciado em Xapuri justificavam a construção de prédios, praças, avenidas, parques, pontes, dentre outros logradouros que fizeram da Capital, finalmente, uma cidade agradável de se viver.
Coube então a Xapuri alguma pouca tinta e umas placas de metal nas casas e lojas que pertenceram aos grandes pioneiros libaneses, portugueses, sírios e nordestinos do Brasil que muito bem mereciam uma outra espécie de homenagem.
Poucos perceberam, mas foram estes estrangeiros que, portrês ou quatro décadas, a partir de Xapuri, levaram o Acre nas costas, quase literalmente, porque os seus impostos eram muitíssimo vultuosos se comparados àqueles cobrados aos comerciantes das outras praças estabelecidas por estas terras.
É claro que a cobrança pressupõe a obrigação do pagamento da dívida, posto que lidamos, hoje, com acreanos que buscam saber o valor do reconhecimento… Assim esperamos.
Convém observar que lutaremos com a mesma energia, como nos versos do Chico Manga-beira, porém, agora, pacíficos, mas não passivos, uma vez que a ideia de fazer barricadas e impedir o trânsito na BR-317 não é de todo irresponsável. Assim  –  e só assim! –  poderemos nos fazer perceber pelos que desconhecem o fator histórico do nosso passado de lutas, suor e sangue.
Certamente, nós queremos receber o que nos é devido; epor isto o cobramos. Talvez haja algum interesse por parte de quem de direito em saudar a dívida. Resta observar que, segundo um adágio francês, o que perturba o reconhecimento dos serviços que prestamos é que o orgulho daquele que os presta e o orgulho de quem os recebe não conseguem acertar o preço do serviço. Nós podemos e sabemos como fazê-lo, com certeza.
Avante, revolucionários do meu tempo!

*Escritor, autor do romance O INVERNO DOS ANJOS DO SOL POENTE, à venda nas livrarias Nobel, Paim e Dom Oscar Romero; e também na DDD / Ufac.

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