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Doenças negligenciadas e a mudança climática global


Doenças negligenciadas são causadas por agentes infecciosos ou parasitas que prevalecem em regiões com predominância de populações de baixa renda e contribuem para as desigualdades socioeconômicas globais, pois representam um entrave ao desenvolvimento dos países mais afetados pelas mesmas. Malária, dengue, leishmaniose, doença de Chagas, esquistossomose e hanseníase são algumas das doenças negligenciadas mais comuns e se constituem em algumas das principais causas de morbidade e mortalidade em todo o mundo. Segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), mais de um bilhão de pes-soas, ou cerca de 15% da população mundial, estão infectadas com uma ou mais dessas doenças negligenciadas.
Outras características invariavelmente associadas às doenças negligenciadas são os baixos investimentos em pesquisas para o desenvolvimento de novos fármacos, métodos diagnósticos e vacinas. Em parte, isso deriva do baixo interesse da indústria farmacêutica tendo em vista que o retorno dos investimentos no desenvolvimento de fármacos para essas doenças é reduzido em razão da clientela ser, em sua maioria, de baixa renda. A baixa quantidade de medicamentos desenvolvidos especificamente para essas doenças confirma essa situação. Segundo a Fiocruz, as doenças tropicais e a tuberculose correspondem a 11,4% da carga global de doenças, mas apenas 1,3% dos 1.556 novos medicamentos registrados entre 1975 e 2004 foram desenvolvidos especificamente para essas doenças. A nível global, só 10% dos investimentos em pesquisa e desenvolvimento em saúde são direcionados para as doenças que representam 90% da carga global de doenças.
O relatório “Tendências emergentes em pesquisa e desenvolvimento em doenças negligenciadas”, publicado em 2014 pela organização internacional ‘Policy Cures’, mostrou uma diminuição de 6,2% nos investimentos voltados para o desenvolvimento de fármacos contra essas doenças entre 2012 e 2013. Embora significativos, os U$ 3,2 bilhões investidos em 2013 são inferiores, por exemplo, aos U$ 4,8 bilhões que o governo americano destina anualmente apenas para as pesquisas com o câncer naquele país. Comparativamente, nos EUA morrem anualmente cerca de 600 mil pessoas com câncer, ao passo que em todo o mundo se estima em cerca de 1 milhão os óbitos relacionados com as doenças negligenciadas. É lamentável que as medidas preventivas e o tratamento (muitas vezes extremamente baratos) para algumas das doenças negligenciadas mais comuns apesar de bem conhecidas, não estão amplamente disponíveis nas áreas mais pobres do planeta.
No Brasil, um estudo feito pela OMS indica que o investimento no controle de sete doenças negligenciadas e consideradas endêmicas (han-seníase, esquistossomose, leishmanio-se visceral, oncocercose, tracoma, filariose linfática e Chagas) poderia garantir um aumento de R$ 55 bilhões da produtividade no país até 2030. Para chegar a esse valor, a pesquisa da OMS levou em consideração o impacto de faltas ao trabalho, aposentadorias precoces e sequelas que reduzem a capacidade de trabalho das pessoas afetadas.
Em São Cristóvão, cidade do interior de Sergipe, a coordenadora de vigilância epidemiológica Flávia Moreira revelou a um repórter do jornal ‘O Estado de São Paulo’ que tinha poucas esperanças quanto ao sucesso das iniciativas de controle de algumas doenças negligenciadas em razão das medidas que deveriam ser adotadas para acabar com os agentes transmissores. O desânimo da responsável pela vigilância sanitária não deveria prevalecer em vista das receitas simples e relativamente baratas que ela reconhecia como indispensáveis para resolver os problemas causados por algumas dessas doenças: a coleta adequada de lixo previne a leishmaniose e a água e esgoto tratados evitam a proliferação dos caramujos e a contaminação pela esquistossomose.
Se por um lado os investimentos públicos em saneamento e educação da população para erradicar e evitar a formação de focos de disseminação dessas doenças aparenta ser uma meta relativamente fácil de ser alcançada, visto que são em sua maioria ações locais, as consequências decorrentes do aquecimento global na expansão geográfica das doenças negligenciadas são muito mais difíceis e complexas de serem resolvidas, pois podem envolver ações de âmbito local, nacional e internacional.
Nesse sentido, a OMS publicou em 2015 o relatório ‘Investing to overcome the global impact of neglected tropical diseases’, no qual alerta que existe uma relação perigosa entre o aquecimento global em curso e as doenças tropicais negligenciadas. A premissa é a seguinte: o aumento da temperatura global causará uma expansão da atual zona tropical do planeta e ampliará as áreas favoráveis para a ocorrência de doenças como a malária e a dengue. O relatório destaca que a dengue poderá ser uma das mais ‘beneficiadas’ com a mudança do clima porque o ciclo de vida do seu vetor, o mosquito Aedes aegypti, é favorecido por temperatura, precipitação e umidade relativa do ar mais elevadas. Além disso, é perfeitamente possível que outras doenças transmitidas pelo Aedes aegypti, como a febre amarela, chikungunya e a zika, apresentem aumento de incidência nos locais em que a dengue se torne epidêmica. Essa realidade parece ser a que estamos vivenciando hoje no Brasil.
Além da dengue, outros vetores como besouros e caracóis responsáveis pela disseminação da doença de Chagas e da esquistossomose também são afetados pelas mudanças de temperatura e umidade, sugerindo que o mapa atual das doenças tropicais poderá mudar substancialmente no futuro. E se concordarmos que as mudanças climáticas tornarão o clima mais extremo, com mais chuvas e inundações em algumas regiões do planeta, doenças como cólera, diarreias infecciosas em geral, esquistossomose e leptospirose poderão se tornar mais frequentes no futuro.
A OMS já deixou claro que considera as mudanças climáticas globais como a maior ameaça à saúde mundial no século XXI. Ela estimou que o aquecimento global causará 250 mil mortes adicionais por ano até 2030 em decorrência de fatores como ondas de calor mais intensas e incêndios, colapso de sistemas de produção de alimentos, conflitos relacionados à escassez de recursos (água e solos agricultáveis) e movimentos de populações, desnutrição resultante da diminuição da produção de alimentos nas regiões mais pobres com a incapacitação para o trabalho das populações afetadas, e a exacerbação da pobreza que afetará a saúde das pessoas.
Embora não seja possível creditar o surto de dengue, chikungunya e zika (doenças negligenciadas) que vivemos atualmente em Rio Branco às mudanças climáticas globais, devemos, no entanto, aproveitar a emergência médica para tirar lições e construir planos de enfrentamentos para surtos ainda mais intensos dessas e de outras doenças no futuro. Também é igualmente importante sensibilizar as instituições públicas e privadas de pesquisa para priorizar o desenvolvimento de vacinas e medicamentos eficientes contra essas doenças, pois se não podemos conter as mudanças climáticas, com certeza podemos mudar o status da dengue e outras doenças de ‘negligenciado’ para ‘prioritário’.

*Evandro Ferreira é engenheiro agrônomo e pesquisador do INPA/Parque Zoobotânico da UFAC

A Gazeta do Acre: