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Sobre ‘O inverno dos Anjos do Sol poente’

Valdeci Duarte *

O romance do escritor Cláudio Motta-Porfiro, O INVERNO DOS ANJOS DO SOL POENTE, apresenta-se rico das memórias de um nordestino que veio esbarrar em terras acreanas. O volume que comporta o romance é um pouco maior do que costumamos ler em tempos modernos, especialmente os leitores iniciantes. São quatrocentas páginas que dificilmente serão lidas em uma tarde. Em uma semana, há quem se arrisque mais tranquilamente. Particularmente, tive que lê-lo enquanto fazia outras leituras, do contrário, iria atrapalhar os meus propósitos pessoais de conhecer outras obras.
Passadas as apresentações do autor, pelos prefaciadores, há muito que ser lido e compreendido pelos leitores nos cinquenta capítulos seguintes, e mais o epílogo da obra. Nos tópicos iniciais da trama, é encontrado Melchíades Ferreira de Lages, personagem central, envolto em seus devaneios e lembranças de uma cidade do passado, onde o leitor pode encontrar remotas lembranças de uma Rio Branco no começo da sua existência, lá pelos idos de 1959 e já escanchando alguns dos cenários que sobrevivem até os dias atuais, como uma Santa Casa de Misericórdia, uma Catedral, o Palácio Rio Branco, a Tentamen, o Cine Teatro Recreio, uma Rua Benjamin Constant, outra Floriano Peixoto e alguns outros, além de nomes de personalidades, hoje ilustres, como, Garibaldi Carneiro Brasil, com quem Melchíades teve a oportunidade de conviver primeiramente em Belém, depois na capital do território do Acre e mesmo o de Luiz Galvez, a quem ele conheceu das falácias do povo e dos escritos sobre suas façanhas, há também o convívio com o ex-governador do Acre, Epaminondas Oliveira Martins (1937-1941), ainda nomeado pelo Presidente da República.
Inicialmente tudo leva a crer que Melchíades é um senhor, quase centenário, relembrando que automóvel nem existia em 1919, um ano após seu nascimento, e que naquele momento, vivido pelo moço, parecia sonho distante estar trocando os animais pelos carros, como meios de transporte de gente e podendo até passar dos 50 km/h. Só de pensar nisso hoje, o deixava tonto. Esses capítulos iniciais são importantíssimos para entender a trajetória do saudosista Melchíades que teve origem no sonho dos retirantes da região de Meruóca, no Ceará. Consta que seus pais fizeram longa e causticante viagem fugindo da miséria absoluta lá do Sertão. Essa leitura faz lembrar Fabiano e sua tropa. Um dia Graciliano Ramos apresentou Sinhá Vitória e seu esposo brucutu ao grande público. No caso comentado, após o personagem perder seus pais, passou a ser cuidado por suas tias, em Fortaleza.
Há incontáveis divagações, nas lembranças de adolescente nas regiões nordestinas. Tudo indica, já no início da narração, feita pelo o próprio Melchíades, que ele é extremamente intelectual, conhecedor de vários autores, vários livros e muitos enredos. Isso vai se confirmando ao longo da trajetória do romance. O autor afirma que o cara “era letrado” e não “era somente um sertanejo analfabeto”, mas de fato o narrador mesmo afirma ter estudado por três nos no Liceu Cearense, em Fortaleza e teria conquistado o bacharelado em Ciências Jurídicas pela Universidade do Pará. Nessa época da sua chegada a Belém, ele tinha 18 anos e boas lembranças de suas tias Chiquita e Nair, deixadas no Ceará. Elas vieram a falecer logo após a conclusão do seu bacharelado e recebimento de um convite irrecusável para vir para o Acre.
O moço fez uma longa trajetória até aqui: primeiro de Baturité a Fortaleza; após, de Fortaleza a Belém, onde estudou, casou, fez família; por fim, lá do Pará ao longínquo Xapuri, no Acre. Um ano e meio depois veio para a Capital do Território do Acre, Rio Branco. É percebível que toda essa aventura fora motivada pela sua excitação ao desconhecido que falou mais alto à sua alma, desde quando ainda vivia em Fortaleza. Em alguns pontos do enredo o cara assume que deu uma boiada para entrar nessa aventura amazônica e que após estar nela, daria duas para não sair.
A viagem de barco de Belém-PA até Xapuri-AC pareceu algo indizível, mas não é que aconteceu? Foram muitos rios, cidadelas visitadas, conversas, contos, cantos, canções, desencantos, mas enfim, houve a entrada no Acre, após a passagem pela boca do rio que desagua no Purus. O Rio Acre era um dos mais estreitos já avistados pelos olhos do cearense que viu a sua aventura ganhar mais horizonte com essa empreitada. O rapaz foi contratado, segundo ele mesmo afirma, por um seringalista de bem, acostumado a rea-lizar transações e mais transações lá pelo Pará e pelo resto da Amazônia brasileira. O alvo da contratação era o serviço de guarda livro, no seringal Boca do Lago, em Xapuri.
Quando já instalado em povoado acreano, em fevereiro de 1938, o herói do romance escreve uma carta à sua esposa Latifa que ficou em Belém do Pará com seus filhos Jorge (1936) e Samira (1937), relatando as boas notícias após alguns dias de instalação no Acre e suspirando a possibilidade de ir morar e administrar os negócios a partir da Capital do Acre, que naqueles dias já dispunha de algumas regalias não encontradas em Xapuri, muito menos nos seringal Boca do Lago por onde se instalou. Na capital seria possível promover um melhor conforto a ela e aos seus filhos deixados para trás na ânsia de ganhar mais dinheiro, fama e prestígio.
Após 20 e poucos capítulos é percebível que grandes aventuras ainda aguardavam o moço principal da história. É possível notar o domínio do enredo, pelo autor da trama, que foi profundo e minucioso em seus relatos sobre a vida do mato que agora estava enfiado o sertanejo de Baturité, nos confins do Ceará. O leitor encontra a época bem caracterizada, os seringais do jeitinho que eram mesmo, as colocações, as leis do mato, as dificuldades de locomoção, o ser matuto dos seringueiros sem instrução, mas paulatinamente conhecendo da realidade da floresta e das águas. Tudo isso no apogeu da extração do látex. É de impressionar a manutenção do linguajar próprio do ambiente, que leva o leitor a crer que o autor viveu essa envolvente história ou realizou exaustiva pesquisa sobre a realidade exposta no romance, do contrário seria toda a trama fruto da imaginação do mesmo. Esta última possibilidade também não deve ser descartada, visto que o moço tem pose e titulação de doutor.
Uma das muitas coisas que se pode observar na riqueza de detalhes do romance é que ele é narrado no presente, como se fosse o instante em que estavam vivendo todas as personagens. É perceptível que a história é contada pelo personagem central da trama, Melchía-des. Em todas as ocasiões ele narra como se aquele fosse o momento presente. Isso é um diferencial do romance de cunho histórico bem enredado por Cláudio Motta e que deveria ser estudado nas escolas do Estado, pois traça o perfil da origem da ocupação do território acreano e enfatiza a importância que os ciclos da borracha tiveram na formação do povo do Acre.
Em algumas partes, o leitor se depara com a narração de causos contados por seringueiros, comboieiros e demais viventes da hostil floresta amazônica. Cada personagem conta, jurando de pés juntos, que se trata de um episódio verídico. Talvez o mais empolgante contador de causos seja o Lascanheta, um personagem conhecido a partir do capítulo 41 e que tem fértil imaginação. Todos esses relatos são descritos com a riqueza de detalhes de uma cena cinematográfica. Tem história para todo tipo de bichos e seres viventes da floresta. Alguns reais, como onças, cobras, peixes e jacarés. Outros lendários como o caboclinho da mata, o boto encantador das meninas faceiras, o Mapinguari e tantos outros mistérios que circundam as florestas e as águas amazônicas.
Há uma passagem no capítulo 46 em que o personagem Melchíades, esteve em um domingo à tarde, em companhia de um imortal da Academia Acreana de Letras, o Dr. Paulo de Menezes Bentes, um dos fundadores. O Sodalício foi presidido por este senhor por 30 anos.  Aliás, daí é possível ver que não é de hoje a tradição de ficar eternamente à frente dessa instituição quase centenária e que pouco tem oferecido à sociedade acreana. A partir dessa observação é possível o leitor entender um pouco da história dessa confraria que de 1937 até 1938 teve à frente Amanajós de Alcântara Vilhena Araújo. Após ele inicia a maior gestão que foi de 1938 até 1967, tendo à frente o dito Dr. Paulo de Menezes Bentes; de 1967 a 1988, tendo à frente Omar Sabino de Paula; de 1988 a 1986, ficou à frente o poeta Mauro D’Ávila Modesto; de 1996 a 2014, quem a presidiu foi o professor Clodomir Monteiro da Silva e atualmente, de 2014 em diante a professora Luísa Galvão Lessa Karlberg. Os três últimos estão vivíssimos da silva e desfilam entre os demais acreanos mortais.
Em seus capítulos finais, Melchíades já na capital do Território do Acre, desfruta da companhia de sua esposa e de seus filhos que consegue trazê-los após a sua vinda de Xapuri e seu estabelecimento na Capital, passando a desempenhar atividades de servidor público federal a serviço do Acre, cargo este conquistado por influências políticas da época. Segundo ele, nesse período, viveu a pior situação da sua vida ao perder sua esposa Latifa para uma doença que ela veio a contrair e que mesmo com os amparos médicos da época, faleceu deixando-o viúvo e com dois filhos pequenos para cuidar.
Nos cinquenta capítulos, é possível observar, que iniciam sempre com uma epígrafe de algum pensador ou erudito de renome, tais como: Gore Vidal, Aristóteles, Caio Júlio César, Libânio, Porfírio, Aurélia Cota, Max Gallo, Victor Considerant, Charles Fourier, Plotino, Carlos Ruiz Zafón, Platão, Honoré de Balzac, Umberto Eco, Santo Agostinho, Dag Hammarkskjod, Alvin Toffler, Voltaire, Jeová Eu Sou, Bertrand Russel, Barón de Montesquieu, Bernard Shaw, Heinrich Boll, Heinrich Ibsen, Soseki Natsume, Thomas Quincey, Jean Paulhan, Jean Paulhan, Blaise Pascal, Rainer Rilke e Juliusz Slowachi. Há raras exceções em que os capítulos são epigrafados pelo próprio autor. O leitor deve achar o fato, mais um diferencial. Em uma obra que agrega pensamento de gente ilustre, o autor não iria se privar dessa honraria. É preciso ficar bem atento para fazer links entre o que dizem as epígrafes e os conteúdos dos capítulos, alguns não são fáceis de consegui estabelecer correlação, mas para uma obra do nível intelectual de O INVERSO DOS ANJOS DO SOL POENTE, as epígrafes de tais pensadores caíram como luvas.
Há algo dito, pelo próprio autor, em uma de suas publicações que se trata de um romance memorialístico especialmente porque as histórias lá contadas têm como base as suas próprias recordações de infância a respeito de tudo o que sua avó cearense lhe contava. Ainda mais que ele guarda grande consideração pelos seus antepassados xapurienses de origem sírio-libanesa, portuguesa e sertaneja. Homens e mulheres que fizeram a diferença em tempos mais remotos. O romancista ainda entende que essa sua obra é uma singela e justa homenagem a muitas pessoas que para ele foram muito especiais. Obra muito boa de ser lida. Enredo muito bom para não ser conhecido, especificamente do ponto de vista histórico e literário. O leitor acreano, cearense, paraense, brasileiro e mundial ganha muito com essa obra. Certamente é um excelente livro para constar na lista de ser lido antes de criticar negativamente os autores acreanos.

*Ex-aluno do autor e leitor do Romance O INVERNO DOS ANJOS DO SOL POENTE, de Cláudio Motta.

A Gazeta do Acre: