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Das voltas que o mundo dá

Não há esmeraldas cor de carne. Elas são verdes, sim, como a realidade pulsante, nua e crua dos que plantam sementes e colhem flores ou frutos abundantes. Somente em pesadelos envoltos em sangue, tal ocorrência poderia ser registrada, posto que os sonhos acordados que alguns sonham, às vezes, podem ser extremamente danosos à saúde de quem os arquitetou.

Depois de anos de estudos avançados, nos antros mais indizíveis da vida proletária do pensador, ele ainda chegou a observar que um dos grandes problemas da modernidade é sermos obrigados a estar em harmonia com os outros. Mais tarde, concluiu que a nossa própria vida é o que há de mais importante. Não interessa com quem a vizinha dormiu, ou por cima, oupor baixo de quem ficou acordada. Agora, rememorando Nietzsche, se quisermos ser pedantes mesmo, podemos tecer as nossas considerações morais sobre a vida alheia, mas estas não nos dizem respeito, definitivamente.

Naqueles dias de penúria, então, os olhos do herói às avessas se voltavam para a esquerda e para a direita, atônitos, desesperados, ensandecidos, mas ficavam fixos mesmo quando vislumbravam as ocorrências anteriores de uma vida cheia de mais baixos que altos.

A barriga quase colara às costas. Longe iam os tempos em que as dietas e os suplementos alimentares eram rotina, e a academia de musculação tornara-se hábito cotidiano, até sexta. Depois, tudo podia rolar.

Conhecera gentes, músculos e métodos. Sabia como encontrar o fio da meada e por quais caminhos alcançaria a fortuna. Mas, naquele momento da vida, o estômago pouco lhe deixava pensar para muito além de saciar a fome. Numa alusão ao filósofo comunista Karl Marx, o humano faminto não consegue pensar através das tripas vazias.

Vendeu ao porteiro do prédio do Leme o celular tijolão por uns ralos caraminguás. Ao barman, conhecidíssimo, pediu um chope na faixa, a ser pago no futuro em prestações a perder de vista. De quebra, a boa aparência do frajola recomendou um bolinho de feijoada, acepipe muito em voga ainda hoje. Vieram mais um e mais outro dos dourados, todos sem colarinho, na medida do que exigia o bacana, agora, pegando carona nas bondades do dono do boteco muito dado a salamaleques e manimolências destes moços que se apaixonam por outros rapazes.

Foi aí que lhe veio à mente a possibilidade de escrever um livro, usando como fio narrativo o tema que dera rumo impreciso à sua vida. Trataria sobre a irresistível arte de arrancar dinheiro de outrem. Pronto. Talvez este fosse até o título da grande obra a ser escrita por um prostituto no verdor dos seus trinta e poucos anos de trapaças e gozos inexprimíveis em mil alcovas devassas tornadas viúvas há bem pouco tempo.

As memórias regurgitavam incentivadas pela ingestão dos teores alcoólicos. Poucas histórias de vidas brilhantes. Muitos planos e golpes malgrados e insustentáveis. Outros, nem tanto.

Em um pedaço de papel de embrulho, à lápis, ele passou a anotar os devaneios e algumas peripécias dele próprio e de alguns destes ou destas que levam a vida na flauta em busca do que de melhor pode acontecer aos que não vertem o suor do rosto em busca do pão de cada dia.

Desde que este velho planeta gira em torno do tal astro rei, os viventes de cá passaram a ver no dinheiro todas as possibilidades, inclusive as nefastas e as impublicáveis; é que estas não dependem do caráter de quem quer que seja. Gente vende a alma da mãe por uma ninharia e negocia o corpo malhado por nada menos que um colar de miçangas travestidas de diamantes. Ora, vejam só.

Lembrou de imediato uma amiga quase da mesma idade em termos cronológicos e em número de aventuras e loucuras mil.

Ela vivera em Marbella, sul da Espanha. Catava euros ou dólares, deitada mesmo, ou de quatro, aos beijos e abraços com homens no mais das vezes desconhecidos, mas de muitas posses. Dizia chamar-se Belatrix aquela diva dona de exagerada beleza e caráter bem reduzido, em vista das peripécias da vida que lhe sacudiram as estruturas psicológicas desde que foi bolinada pelo pai, aos sete anos, ainda em Valadares.

Nunca teve filhos e encantava a todos os homens quantos perto dela ficassem. Tinha uma beleza e charme incomuns, além de trejeitos faceiros ao conversar, com o fito de atrair as atenções para si, o que é muito próprio entre as latino americanas.

Um dia, ela confessou haver-se encantado com a juventude escondida por trás das rugas e do corpo decaído de um homem de bem mais de sessenta voltas. Ele mexia com o negócio da construção de iates de luxo e não via nenhum problema em flutuar ou voar entre as Américas, a Europa e o Japão. Herdara a fortuna do pai libanês, não deixara a peteca cair, não arruinara, mas era perdulário como os ricos inteligentes viajores dessa nave louca chamada vida sobre a Terra.

Belatrix foi presenteada com joias do mais fino gosto. Posava com roupas elaboradas pelos melhores costureiros de cá e de lá. Sentia-se uma deusa, cabelo ao vento, a bordo de um Ferrari vermelho conversível pelas ruas de Saint-Tropez, onde residiu por dois anos. Estonteantemente bela, no verdor dos seus vinte e dois anos, chegara de sopetão e amolecera o coração do milionário.

Um dia, ele a flagrou usando uma droga pesada muito comum entre os franceses bacanas. Como havia prometido, pagou as contas do resort e se foi sem dizer adeus, mas embalado pelo ronco característico do motor do possante, como ele chamava o carrão italiano antes usado pela diva.

Em uma semana de pensares vagos e nada objetivos, decidiu tentar a vida nos rendezvousdos portos de Marseille, agora, a bom soldo exercendo o desiderato de mulher da vida fácil. Não tão fácil, posto que bêbados e arruaceiros são os que mais apreciam os tremores entre os gozos e os prazeres da carne.

Passados poucos meses, foi convencida por um agenciador a fazer a vida em Marbella, onde o dinheiro corria solto e os sonhos dos seios e do bumbum novos poderiam tornar-se realidade. Para lá, a deslumbrante Belatrix se foi.

Moças baixas, de cabelos pretos, pálidas e com uns pelinhos no rosto faziam a festa entre os novos ricos do turismo local. Era o que havia por lá.
Agora, Belatrix já contava os recursos financeiros a partir de algarismos acrescidos de mais de seis zeros. Em três anos de permanência, sonhava com o dia em que voltaria ao Brasil e poderia adquirir um apartamento de alto padrão onde montaria uma casa de conveniências a preços exorbitantes como gostam os brasileiros mais abonados.

Na festa de despedida, então, algumas das moças do local, recalcadas com a beleza desafiadora da nossa heroína, ensejaram uma briga e uma cadeirada sobrou para o nariz arrebitado da brasileira. Ela desmaiou.

Mandada de volta para o Brasil em um voo comercial da Delta, em alguns meses ela recuperou a beleza madura e hoje vive do que lhe rende o projeto das suítes de conveniência que se realizou enquanto casa de massagem na avenida rio branco.

Vejam só as voltas que o mundo dá!

*Autor do romance O INVERNO DOS ANJOS DO SOL POENTE, disponível nas livrarias Paim, Nobel e Dom Oscar Romero; e na DDD / Ufac.

A Gazeta do Acre: