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Paçoca de jabá, baião de dois e chá de capim santo

Seria aquele um período de férias escolares, talvez. As lembranças são um tanto vagas. Fato é que era julho e estávamos, eu, uma irmã mais velha e uma vizinha, debaixo do pé de jenipapo, bem em frente à nossa vivenda da rua das castanholeiras. Era umas nove da manhã, ou talvez mais. O frio chegava a sete graus, ou talvez menos. Lembro que a friagem, nos meus verdes anos sessenta, era do tipo que matava alguns dos humanos que iam além das setenta primaveras. Era terrível e tão bisonha que, neste dia, um bem-te-vi caiu morto de frio bem próximo a nós, que nos aquecíamos junto a uma fogueira, quase no meio da rua.

Tínhamos, antes, nos esbaldado em um composto de leite de castanha amazônica e jerimum caboclo. Por isto, éramos rijos e saudáveis numa época que o alimento, pelo menos no meu rincão bonito e abençoado por Deus, não era de graça, mas também não custava tanto dinheiro.

Habitávamos uma casa de tamanho médio para a época, mas o estivador hercúleo, meu pai, era uma espécie de capataz de um grande terreno, nas cercanias do nosso, de propriedade dos velosos, donos do patrimônio, porém residentes em ricos seringais de propriedade deles.

Ali, no verão, o jerimum brotava em abundância, sem que fosse preciso sequer plantar uma semente, ou uma muda. Da mesma forma, em um outro ângulo do terreno, a batata doce nascia e crescia, milagrosamente, e nós só tínhamos o trabalho de arrancá-la da terra.

Próximo ao nosso jirau – aparelho rústico de lavar louça dependurado na janela da cozinha para fora da casa – o terreno ficava úmido, naturalmente. Lá, sem que ninguém plantasse, nasciam pés de aninga, ou galuça, uma espécie de tajá comestível. A batata é deliciosa e as folhas podem substituir a couve, na sopa de feijão.

Na parte dianteira do quintal, ao lado da casa, ainda hoje em pé, ficava o grande trunfo do povo da minha raça. Ali, cultivamos uma horta por mais de vinte anos, onde plantávamos, basicamente, alface, couve, cebolinha e tomate. Em outras palavras, era destes vegetais que vinha parte significativa das proteínas e carboidratos que fizeram de nós seis moleques fortes e muito objetivos.

É claro que no verão a horta atingia o máximo da produção, mas nós nada vendíamos uma vez que, em casa, o consumo era alto porque a molecada era glutona. Era preciso fortalecer, certamente, com comida de qualidade, o tutano da negrada afoita e cheia de ginga.

Afora as verduras, tudo no seu tempo, havia laranjeiras, tangerineiras, limeiras, jaqueiras, coqueiros, goiabeiras, gravioleiras, cupuaçuzeiros, bananeiras, dentre outras.

Interessantes mesmo, contudo, eram os cajus com os quais era fabricado, em casa mesmo, o melhor refrigerante do mundo, a cajuína. Também, no início do inverno, íamos para as ruas, ainda manhãzinha, catar mangas com as quais era feito um vinagre de alto padrão. Éramos meros sobreviventes, mas os nossos mais velhos sabiam localizar os dormitórios das corujas.

Muitos dos víveres, como a farinha, o feijão e o arroz, eram comprados nas canoas dos colonos, na beira do rio, a preços camaradas. Ao lado deste aspecto das nossas vidas, criávamos, na cidade, sim, galinhas, patos, porcos, dentre outros.

Nos meses de estiagem, os caminhos dos seringais ficavam secos e o nosso herói, atirador muito famoso nas redondezas, seguia à caça de antas, queixadas, veados, pacas, com os quais as carências proteicas eram supridas e os animais domésticos eram poupados enquanto chegavam à idade do abate.

De certa feita, papai chegou com um jacaré morto. Tirou-lhe o couro, salgou-o e, em poucos dias, o bicho ficou melhor que o pirarucu. De vez em quando, trazia onças. Ele tirava-lhes o couro que era vendido para uns marreteiros bolivianos. A carne era embebida em um composto de limão, vinagre, pimenta do reino e alho. Em um dia, tornava-se mais saborosa que a dos outros animais.

Uma vez, ele trouxe morta uma guariba, fêmea do macaco capelão, um bicho grande. Nada sobrou, mas o melhor do repasto ficou por conta de um prato muito festejado entre os seringueiros – o gogó de guariba ao leite da castanha. Como dizia o meu velho, um pitéu.

A comida era feita em fogo alto. Tudo tinha um gosto muito acima do comum, tendo em vista os dons da cozinheira que também deu à luz uma reca de meninos muito bem-educados. Porém, inesquecíveis são os dias em que, na janta, comíamos paçoca de jabá, baião de dois e, para desentalar, o chá do capim santo.

A paçoca consistia em uma mistura de farinha de macaxeira com jabá gorda frita. Tudo era triturado numa máquina de moer carne. Era uma verdadeira maravilha.

Alguém, ainda nos anos dez do século passado, achou que a melhor água estaria situada em um pedaço da terra longe de casa cerca de uns cem metros. Acertou. Ali foi cavado um poço utilizado por mais de oitenta anos. Problema maior é que, na época, não havia torneira nem bomba e nós tínhamos que carregar o líquido precioso em latas dependuradas em um cambão. Como a família era grande, dois barris de doze latas eram cheios todo dia, além da talha – espécie de pote grande – onde era colocada a água de beber, sem gelo, é claro.

Passada essa fase preliminar da atividade física diária, íamos para a parte que exigia um pouco mais de talento. Usávamos o machado com grande habilidade porque o fogão de ferro era movido a lenha.

Na verdade, sou originário de duas famílias sertanejas que por aqui chegaram a partir de 1908, um à procura do outro, irmão ou primo que viera primeiro. São pioneiros reais e nunca mentiram dizendo ter tomado parte da revolução acreana. Fui criado com o carinho dos meus pais e de uma avó cearense rústica. Levei porrada para aprender a ser gente. Apanhei de palmatória e de corda, para instruir-me na arte da busca pelo melhor caminho.

Em síntese, fiquei sofisticado depois, bem depois, quando cheguei na capital. Entretanto, pelo modus operandi muito peculiar a mim, um homem que planeja e executa, dá para notar, já de chegada, que sou de origem humilde, sim senhor. Fui criado na bagaça. Não usei fralda. Usei cueiro feito a partir de sacos de açúcar. Peguei quebranto e fui curado na rezadeira. Papai não podia dar bicicleta de mimo. Presente de Natal era um par de meia, ou um sabonete com o qual tomávamos banho, talvez, durante o janeiro, e o resto do ano era na base do sabão zebu, inclusive no cabelo. Naquele tempo, existiam umas quatro torneiras em Xapuri. Havia privada e não sanitário com descarga. Tomava banho sem roupa no rio. Corria atrás do boi e não o boi atrás de mim. Matava a cobra, mostrava o pau e a cobra morta. Atirava de baladeira, de revólver e de espingarda. Usava machado, enxada, terçado e foice com destreza. Fui servente de pedreiro e aprendiz de marceneiro. Vendi picolé. Conheci geladeira aos dezessete. Não havia televisão lá em casa. Ninguém morreu por causa disso, e todos sobreviveram rijos e inteligentes.

Em suma, nasci ainda nos anos cinquenta, uma época em que menino não tinha medo nem de alma.
Todavia, hoje, passados tantos anos, juntos temos percebido que alguém, bem mais que os outros tantos, dispendeu esforços descomunais. O homem forte, hoje morto, ainda é um dos nossos maiores orgulhos, posto ter conseguido, apesar de analfabeto, colocar diplomas de nível superior nas mãos da superior maioria dos filhos.

Lembro, pois, que a senhora Lispector deixou escrito algo muito parecido com o aforismo segundo o qual ninguém deve se enganar com os mais pacatos, uma vez que a simplicidade e a serenidade só podem ser conseguidas mediante muito trabalho.

O empenho ainda é grande, uma vez que as futuras gerações haverão de muito honrar a fímbria dos pioneiros Motta-Porfiro, com a graça de Deus.

*Autor do romance O INVERNO DOS ANJOS DO SOL POENTE, disponível nas livrarias Paim, Nobel e Dom Oscar Romero; na Edufac e na DDD / Ufac.

A Gazeta do Acre: