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Laços humanamente tênues, irrisórios ou nulos

Crianças bem miúdas brincavam sobre o barro ainda úmido e escurecido pelo inverno que findava. Estavam descalças e as roupas, em frangalhos, escurecidas pelos muitos dias de uso. Há tempos, não tomavam banho e, apesar do frio, elas poucos se importavam e continuavam saltitantes como se nada de mal lhes estivesse a acontecer. É que, naquelas semanas, ocorrera um ataque dos senhores da terra aos camponeses que teimavam em se organizar em busca da independência do pequeno território. Contaram alguns mortos e muitos feridos, dentre os quais vizinhos e parentes bem próximos. O caos era real e muito sangue ainda correria.

Havia um cheiro de incenso no ar vindo não se sabe de onde. O espírito evoluído pairou sobre o horizonte ao longe. Foi a partir daí que o livre pensador começou a refletir sobre o conceito defraternidade nos tempos modernos, uma época marcadamente humana em que ninguém sequer olha para o irmão ao lado, esteja ele vivo ou morto. É preciso viajar direto a um dos cânones da sabedoria hindu segundo o qual ser fraterno significa entender que um grito de dor é igual em todas as línguas, e o mesmo se aplica a um sorriso.

Todavia as coisas não seguem exatamente esse formato. Hoje, o humano já não pensa assim e a solidariedade é uma espécie de artigo velho. Ainda teremos alguns séculos até que ela volte à crista da onda.

A dependência recíproca é pregada pelo estado capitalista. No entanto, há o mote principal do quem pode, pode. O fator humano é o dinheiro. Não. Ninguém está preocupado sequer em ouvir o que o outro tem a dizer. A preocupação, mesmo durante o diálogo, é se contrapor, é negar a afirmação do interlocutor mesmo que ele esteja coberto das razões mais claras possíveis. O argumento do outro deixou de ser interessante há muito tempo. Importa tão somente contradizer, sacanear.
Pois bem. Nos anos do fim da guerra fria, eles moravam no Kosovo. A família era constituída pelo casal e por mais cinco filhos. Todos habitavam uma casa de pedra de um cômodo apenas, cercada por uma pequena plantação de hortaliças, entre as cidades de Pristina e Dakovica.

A vida tornara-se difícil, porque os sérvios não queriam a separação do Kosovo, antes apenas uma província. Muitos embargos foram feitos e a fome se alastrou. A família pobre, é claro, foi atingida em cheio porque dependia dos víveres a serem vendidos nas feiras livres de Pristina, onde o dinheiro escasseou e depois sumiu da vida das pessoas. Era a guerra que se anunciava dilacerante.

Não havia nada a fazer. Em poucas semanas, eles embarcaram em um velho caminhão de carroceria descoberta e foram viver a aventura que é a vida miserável dos retirantes europeus oriundos das regiões mais pobres do velho continente.

Em dois dias de uma viagem sofrida, chegaram a Estocolmo, onde foram direcionados para um albergue de padres católicos. Eram poucas famílias que se juntaram a umas outras sete ou oito. Ali, receberam tratamento digno a partir dos religiosos que também contavam com médicos, nutricionistas, psicólogos, roupas e bastante sopa para fazer o contraponto ao frio intenso.

E tudo piorou e ficou ruim a perder de vista. O pai foi internado em um hospital, vítima de uma pneumonia dupla. A mãe seguiu servindo de acompanhante, mas lá também ficou. Com a diferença de quinze dias, os dois vieram a falecer e os filhos foram colocados à disposição de famílias beneméritas em uma casa de acolhimento, ainda na Suécia.

Os dois meninos menores, gêmeos de três anos, seguiram para os Estados Unidos, onde passaram a viver com uma família de novos puritanos do Utah. Uma menina, de cinco de idade, foi adotada por um casal de noruegueses, transferindo-se para Oslo, logo em seguida. O segundo mais velho foi levado para Copenhagen por duas mulheres dinamarquesas de média idade, que se diziam casadas.

Morina Recasner, a filha mais velha, ainda aos onze anos, foi acolhida em um convento de freiras de Gotemburgo. A instituição logo a colocou também em disponibilidade para adoção.

Em poucas semanas, a menina quase moça caiu nas graças de uma família sueca, que já contava com duas filhas da mesma faixa etária. Em tese, a adotada serviria de companhia e eles teriam, a partir de então, três filhas que superlotariam a casa e os corações do casal rico.

A mansão dos Petterson estava localizada na beira de um fiorde de águas cristalinas azuladas. Uma piscina ficava rente ao mar e a impressão era que uma estava ligado ao outro, ou vice-versa.

Para a nova moradora, foi reservado um aposento bem equipado no segundo piso, com vista para a estrada sinuosa que serpenteava um jardim muito bem cuidado por zeladores de origem latina.

As duas meninas louras faziam um certo contraste com a palidez da pele e o negrume do cabelo dairmã recentemente chegada. Tudo ali era um luxo só, principalmente, os pormenores relativos às filhas legítimas.

Logo, a adotiva percebeu que não estaria ali apenas para servir de companhia. Seria uma sparing partner das outras duas garotas mimadas e de poucos sentimentos. O tratamento por parte dos pais não seria o mesmo para as três. Os costumes das garotas suecas eram arraigados no que tange ao vestuário, ao comportamento e ao senso de responsabilidade trazido pela mocinha detestavelmente pobre e desfigurada.

Ademais, um detalhe deu uma certa tonalidade cinza ao tratamento dispensado a Morina. A escola das louras era particular. Para lá, elas iam às oito e só retornavam às dezesseis, no carro da família, que dispunha de motorista. As meninas louras estudavam as disciplinas convencionais, além das seis línguas estrangeiras, de forma a que, no futuro, pudessem assumir cargos de direção no mundo do euro. Tornar-se-iam engenheiras, médicas, economistas, advogadas. Seriam diretoras, gerentes, comandantes, executivas de alto nível.

A menina pálida, de descendência caucasiana e albanesa, ainda com algum sotaque, estudava, mal e pessimamente, à tarde, os rudimentos da língua dos suecos em uma escola pública de qualidade reduzida se comparada à escola das irmãs adotivas ricas.

Convém, então, viajar através do pensamento comunista.

A escola, destinada pelas elites aos mais humildes, serve para a manutenção da discriminação. Os pobres continuarão cada vez mais pobres e os ricos, cada vez mais ricos. Por isto, os senhores dos destinos queimaram os livros escritos por Marx. Lá as verdades eram muitas e estavam levando os mais humildes a perceber que o seu mundo é miserável porque é assim que os mais ricos o querem.

Não há nenhuma razão, segundo a elite, para uma educação de qualidade, uma vez que as pessoas não podem estar preparadas mais do que o suficiente para não morrer de fome e ter forças para trabalhar e gerar riquezas até que a morte os ceifem com pouco mais de quarenta anos de vida necessitada.
Para os selecionados, não é conveniente se misturar. Nos dias que correm, alguns raros laços entre os humanos de origem diferente são muito tênues. Destes vínculos, uma porcentagem imensa é de caráter irrisório e a maioria é nula, ou inexiste.

CLÁUDIO MOTTA-PORFIRO, Escritor. Autor do romance O INVERNO DOS ANJOS DO SOL POENTE, disponível nas livrarias Paim, Nobel e Dom Oscar Romero.

A Gazeta do Acre: