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Os alemães também planejam contrabandear sementes e mudas de seringueiras da Amazônia (Segunda Parte)

Na primeira parte desse artigo comentamos sobre o episódio protagonizado pelo aventureiro inglês Henry Wickham, que em 1876 contrabandeou milhares de sementes de seringueira do Brasil para a Inglaterra onde elas foram germinadas e transportadas para as colônias inglesas na Ásia. Lá elasforam cultivadas em larga escala e a partir de 1910 a produção de borracha asiática ‘invadiu’ o mercado, provocou um ‘crash’ no preço e obliterou quase por completo o sistema extrativista de produção firmemente estabelecido na Amazônia.

Também comentamos que se o plano inglês tivesse falhado o monopólio brasileiro na produção de borracha não teria durado muito tempo, pois os alemães tinham colocado em ação um plano muito mais ousado que previa não apenas o contrabando das sementes de seringueira, mas também de mudas e de informações etnobotânicas, ecológicas e de distribuição geográfica sobre todas as espécies de plantas da Amazônia brasileira que, no final do século XIX, eram exploradaspara a produção de borracha (cerca de dez espécies de seringueiras e uma dúzia de árvores pertencentes a outras famílias botânicas). Como os ingleses, os alemães planejavam fazer plantios de seringueiras em suas colônias da África e da Ásia.

Os alemães tinham instalado sua ‘base avançada’ em Manaus,mas o trabalho que deveria iniciar em 1899 teve que ser adiado por um ano depois que o responsável pela operação – Dr. Kuhla, pesquisador do Instituto Botânico de Marburg – faleceu fulminado pela febre amarela um mês depois de aportarem Manaus. Em seu lugar foi contratado outro alemão, Ernst Ule, um botânico com grande experiência de campo que residia no Brasil desde meados de 1880 e que já tinha até assumido por um tempo o cargo de subdiretor do Departamento de Botânica do mais importante museu botânico do Brasil na época, o Museu Nacional no Rio de Janeiro. Para despistar os brasileiros de sua real intenção e dar um caráter eminentemente científico à sua missão, Ule era formalmente apenas um contratado do Museu Botânico de Berlim.

Ule conhecia bem as florestas das regiões sul e Sudeste do Brasil, tendo efetuado várias expedições pelos Estados de Santa Catarina, São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Ele também fez parte da famosa expedição ‘Cruls’ que entre 1892 e 1894, por ordem do então presidente Marechal Floriano Peixoto, demarcou 14,4 mil quilômetros quadrados de terra no interior de Goiás onde posteriormente foi instalado o Distrito Federal e construída a nova capital brasileira, Brasília.

Ernst Ule chegou a Manaus em julho de 1900 e em agosto partiu para a primeira viagem exploratória no baixo rio Juruá onde identificou e colheu, entre outras, amostras de seringueiras, do caucho e da seringarana. Retornou no início de dezembro provavelmente sem as sementes de nenhuma dessas espécies, que costumam frutificar no auge do período das cheias dos rios da região (dezembro-fevereiro). Ciente do potencial que encontrou no rio Juruá, o botânico alemão rapidamente enviou as amostras colhidas para a Alemanha e em março de 1901 partiu para o alto Juruá, em terras acreanas em uma viagem que duraria oito meses.

Ernst Ule chegou à boca do rio Tejo, um pouco acima da cidade de Marechal Thaumaturgo, em 25 de abril. Ele permaneceu em terras acreanas por quase seis meses explorando principalmente as florestas localizadas ao longo do rio Juruá-Mirim. É possível que durante sua longa permanência no Acre ela tenha ‘aprendido’ na prática todo o processo de corte, coleta e defumação do látex da seringueira, anotando época da produção de frutos, floração, etc.

Além da prioridade na coleta e estudo das espécies produtoras de borracha, Ule também fez coletas botânicas generalizadas de muitas plantas que encontrou com flores e frutos. Essas amostras feitas no Acre foram enviadas, após o seu retorno a Manaus, para o Museu Botânico de Berlim e de lá aquelas colhidas em duplicatas,foram doadas ou trocadas com outros herbários europeus. Muitas amostras colhidas por Ule foram usadas na descrição de espécies novas para a ciência e por isso são tecnicamente chamadas de “tipos”. Nessa altura de nossa narrativa é preciso fazer uma breve pausa na história do plano alemão de contrabandear a seringueira da Amazônia e falar sobre fatos lamentáveis relacionados tanto com as amostras botânicas colhidas pelo alemão no Acre como com a região em que ele colheu essas amostras na boca do rio Juruá-Mirim.

Em botânica, um herbário tem seu valor científico e histórico medido pela quantidade de “amostras tipo”’ (usadas na descrição espécies novas para a ciência) que nele existem. Assim, quanto mais “tipos” encontram-se depositados em um herbário, mais valioso ele é. Pois bem. Entre meados de 1800 e até antes da primeira guerra mundial os museus (de todos os tipos) e herbários alemães foram muito enriquecidos com amostras colhidas por expedições enviadas aos quatro cantos do planeta. Depois de uma pausa em razão da primeira guerra mundial, os alemães retomaram sua busca incessante por amostras para suas coleções científicas de todos os tipos até a eclosão da segunda guerra.

Acontece que durante a segunda guerra mundial a Alemanha foi arrasada pelos bombardeios realizados pelos países aliados, que, no lugar de focar apenas em objetivos militares, optaram pela política de ‘terra arrasada’, de não deixar pedra sobre pedra. E nessa sanha destruidora, museus e herbários alemães foram atingidos e parte considerável de suas coleções foi destruída. Muitas das “amostras tipo” colhidas por Ule na região do rio Juruá-Mirim foram destruídas. Em alguns casos, duplicatas dessas amostras não tinham sido distribuídas para outros herbários, abrindo a oportunidade rara para que uma nova ‘amostra tipo’ pudesse ser colhida.

Ocorre que para fazer essa nova coleta, e em observação às normas do Código Internacional de Botânica, é preciso voltar ao mesmo lugar onde a primeira amostra foi colhida, região que em botânica chamamos de “localidade tipo”. Assim, em 2001 o Herbário da UFAC fez uma grande expedição ao rio Juruá-Mirim para passar nos locais onde Ule havia estado em 1901 e colher o máximo de amostras possíveis de forma a garantir que o Herbário da UFAC passasse a abrigar, quem sabe, algumas amostras “tipo” de espécies descritas com base nas coletas de Ernst Ule. Eu liderei essa expedição. E sabem como encontramos as “localidades tipo” da boca do rio Juruá-Mirim visitadas por Ule? Como ‘terra arrasada’.

É isso. No Acre não foi preciso uma guerra sangrenta para transformar em terra arrasada as “localidades tipo” das amostras botânicas colhidas por Ernst Ule em 1901. Não que sejamos mais civilizados que os europeus. Muito pelo contrário. Estamos cumprindo com louvor o papel de ‘bárbaros indomados’ cuja sanha destruidora do meio ambiente não tem paralelo na história da humanidade. Duvidam? Para os mais curiosos, no Google Earth é possível ver hoje uma fazenda na boca do rio Juruá-Mirim (‘Cinco Irmãos”) que tem pelo menos 1,5 mil hectares de pastagem.
(Artigo continua…)

Para saber mais:
– As sementes da discórdia, por Carlos Haag, publicada na Revista de Pesquisa Fapesp, 2009.
– Biography of Ernst Ule (1854-1915),por Hermann Harms, publicada em Verhand. des Bot.
Vereins der Prov. Brandenburg, 1916 (versão em inglês, 2016). – Brazil and the Struggle for Rubber, por Warren Dean, Cambridge University Press, 2008.

Evandro Ferreira, Pesquisador do INPA e do Parque Zoobotânico da UFAC.

A Gazeta do Acre: