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Em rota de colisão com a galáxia inteira

Uma a uma as gotículas do frio úmido molhavam a folhagem do pequeno pomar localizado nos fundos de uma quinta em que os vinhais predominavam. Ao longe e ao largo, as montanhas tingiam-se de um verde acinzentado pelas nuvens pesadas que pairavam sobre o vale. Também a penugem erótica do nu artístico a óleo umedecera. O silêncio e a monotonia eram quebrados pelo retinir das ferramentas no celeiro e pelo chilrear dos rouxinóis de melodia triste.

Em verdade vos afianço que o risco que corre o pau corre o machado. É um erro tomar por base a premissa segundo a qual ou vai ou racha ou arrebenta a tampa da caixa. Das duas uma: ou o ente é rico dono do engenho, ou se faz pobre puxando o bagaço da cana. Por outra via, pau que nasce torto não tem jeito e morre torto. Em outras palavras, os ímpetos devem ser refreados e a serenidade deve ditar as normas. Deve-se ir devagar e sempre, por esta vida afora, porque o andor é de papel reciclado e o santo, de barro fresco.

Então, ali ela estava, em pensamentos esvoaçantes, como a pisar nas nuvens, apesar do sobrepeso, dos peitos hoctonáveis e da bunda arcaica, com o olhar fixo no horizonte nebuloso e em meio a muitas anotações e reflexões divagantes.

De descendência turca, nascera nos arredores de Sidney, num dia de sol, como todos, em fins dos anos oitenta. Nunca foi rica, ademais, agora caminhando em velocidade acima da trigésima volta, ainda continua pobre desde que nasceu, com certeza. Comeu o pão que o diabo amassou com o rabo, enquanto pertencente a uma família de imigrantes. É daquele tipo de pobretona mimada que não anda, mas flutua, e só pisa no chão porque a lei da gravidade não foi revogada e ainda a obriga a tal desconforto.

Em dado momento, ela se espreguiçou de leve e sorriu como o gato da Alice no País das Maravilhas. Seus olhos se estreitaram e ela perguntou a si mesma:
– Por que nenhuma das minhas tantas oportunidades foram aproveitadas? Que porra é essa? A antipatia seria realmente tão pública e tão notória aos olhos de todos?

Fizera as primeiras parcas letras em bom colégio pago pelos favores nacionais. Mas nada disso valera quase nada, ou coisa alguma. Hoje, o coeficiente de inteligência aparenta ao de alguém saído de uma orgia com animais de estimação.

As oportunidades não foram aproveitadas, posto que acreditara muito mais em dar um golpe em um rico qualquer, a correr riscos em vestibulares e universidades chatas que jamais lhe dariam o seu primeiro milhão de dólares tão sonhado. As desilusões não tardaram e, agora, em fase pré-balzaquiana, pensava no quanto a sua vida fútil lhe tinha sido enganosa e cruel.

Quisera fazer o papel da esposa dócil e educada, mas o relacionamento mal planejado com alma mesquinha, sovina e mão de vaca rendera-lhe dores de cabeça atrozes, depois que o tal cônjuge se evadiu deixando-a sem eira, nem beira e nem a rama da figueira. Na pindaíba, por assim dizer.

O tratamento psiquiátrico ocorrera numa estância ali perto. Agora, nos raros momentos de lucidez, ela tomava nota das divagações próprias de quem não viveu momentos bons, principalmente, nos últimos dez ou quinze anos.

– O humano vive, na modernidade, tempos graves que muito se assemelham ao bico torto das aves de rapina. Os contemporâneos nossos estão deveras desarrazoados, loucos mesmo. Uma mulher boa é uma mulher neurótica, ciumenta, surtada, maluca e psicopata. Mulher normal não tem graça. Como anotou Proust, para tornar a realidade suportável, todos temos que cultivar em nós certas pequenas loucuras.

Segundo a nossa heroína arrítmica e bipolar, essa conversa de sempre dar mais sorrisos, mais abraços, mais paz, mostrar a melhor versão de si mesmo é história pra boi dormir na hora da onça beber água. Apenas devemos dar graças à vida por nos dar o luxo de sermos capazes de acordar todas as manhãs vivos e pulsantes. A isto, certamente, sejamos muito gratos.

– A partir de agora, serei governanta na residência de um amante de outrora. Viverei a solteirice, porque ser solteira não é um estado civil, é um estado de paz de espírito, de liberdade. Penso que, enquanto não acho a pessoa certa, vou me divertindo com ninguém, porque ninguém me estressa, ninguém me chifra e ninguém testa a minha paciência. Ninguém é vida, e todos deveriam provar este estado do ser.

E as anotações iam tomando rumo diverso. Houvera ela dito ao seu analista que estudaria literatura e ainda deixaria publicadas as obras póstumas de uma dama em delírio mórbido.

– A mulher não é fria por opção, mas, sim, porque o homem que hoje diz querer casar-se, na verdade, só quer brincar, trotear, flautear, chafurdar no oásis da satisfação estilo taco dentro e bola fora. Ela não nasce com o coração duro, mas assim se torna com o passar dos danos. A mulher não vem ao mundo assim tão taciturna e calculista. Ela não nasce desconfiada e, se isso acontece, é porque a alma insana de um troteador, torturador de almas e príncipe sanguinário a deixou ao vento carregada dos traumas mais irreversíveis e revoltantes de que se pode ter notícia por estes rincões de Deus meu.

E foi aí que os arroubos literários passaram a fazer parte do quotidiano da nossa musa em papel de embrulho.

– Conselhos eu não dou. Alugo-os, ou vendo-os, a depender do freguês. Por isto publicarei um livro e o negociarei a preço de banana brasileira, a melhor e a mais famosa, porque vem da terra onde nascem os homens mais dribladores da galáxia. Em síntese e em verdade vos digo, minha amiga leitora: escolha alguém que não está sempre ocupado demais para te ver, que não enrola para responder as suas mensagens e nem fica de joguinho na hora de dizer o que sente. Escolha alguém que te ligue no meio do dia só para ouvir a sua voz, que te faz surpresas sem motivos e te dá flores, nem que sejam roubadas do quintal do vizinho. Fique com alguém que não tenha vergonha de te assumir, de te apresentar aos amigos, à família, aos pais. Aquele tal que te marca em postagens e escreve legendas engraçadas nas suas fotos. Fique com alguém que também tenha escolhido ficar com você.

Propensa a um surto psicótico, ela agora morde raivosa o lápis. Está desassossegada. Coça a cabeça como se estivesse prestes a arrancar os cabelos. A doidivanas continua a sua diatribe ácida:

– Tem homem que precisa ser estudado por que o seu comportamento é praticamente indestrinçável. Eu não entendo o cara que tem tudo de uma mulher, mas finda abandonando-a até terminar o relacionamento para, depois, voltar com o rabo entre as penas. É difícil conviver em meio a tantos enganadores e salteadores da boa-fé feminina.

Passados alguns anos, depois que a paciente se foi, assim na base do quase te amo, o analista encontrou, entre uns documentos bem antigos, mais alguns alfarrábios, em notas esparsas, meio inteligíveis, deixados por ela. Em papel amassado estava escrito que o que os olhos não veem a vida esfrega na cara. Muito drástico.

Por fim, em meio a umas garatujas muito confusas, ficou anotada uma assertiva muito a cara dela:
– Nada é eterno. O café esfria, o cigarro apaga, o tempo passa, as pessoas mudam.

Para deixar o quengo ainda mais em torvelinho, vamos lembrar Florbela Espanca, poetisa portuguesa. Ela deixou anotado algo parecido com a assertiva segundo a qual, apesar de tudo, a loucura não é assim uma coisa tão feia como muita gente julga. Há tantos loucos felizes!

CLÁUDIO MOTTA-PORFIRO, Escritor. Autor do romance O INVERNO DOS ANJOS DO SOL POENTE, disponível nas livrarias Nobel, Paim e Dom Oscar Romero, ou na páginahttps://www.facebook.com/claudiomotta.com.br/

A Gazeta do Acre: