Num daqueles dias de setembro, o peralta houvera ficado em casa com os demais da família, posto que o pai estivador fora ao trabalho estafante das subidas e descidas, barranco acima e abaixo, a transportar os produtos que chegavam e os que saíam da cidade. Os armazéns e portos eram um burburinho de homens que iam e vinham, vertendo suor e sonhos, na busca pelo sustento dos seus, debaixo de cargas que chegavam a bem mais que o seu próprio peso.
De pouco mais de dois anos de idade, à saída do pai, postara-se agarrado às grades de madeira que o separavam da rua quase deserta, não fossem alguns viandantes que buscavam víveres nas mercearias da beira do rio. Houvera chorado copiosamente, mas, agora, apenas soluçava, coçava a cabeça e passava as mãos querendo dali tirar um fio de catarro que lhe corria das narinas. Duas irmãs adultas e três irmãos, dentre os quais um ainda aos cinco de idade, além da mãe costureira, houveram também ficado em casa nos seus afazeres domésticos; sim, porque, em meio à gente pobre, um garotinho de cinco anos tem como incumbência dar milho e água para as galinhas, ajudar a aguar a horta, catar arroz e feijão, e assim por diante.
Lá na frente da casa, à porta, apenas o peralta a remoer ideias muito impróprias e bastante inadequadas. Daí, foi que, não mais que de um segundo para o outro, ele arrastou uma cadeira – daquelas dobráveis da marca jararaca – e, através desta, assomou à janela e dali pulou para a calçada externa, já na rua. Dizem ter apenas levado uma leve pancada na cabeça que dele mereceu alguma massagem, posto que a dor era bem menor que a vontade de estar perto do pai.
Moreninho pra lá de jambo, sem nenhuma roupa, ele saiu correndo e, lá na frente, desceu a ladeira que o levava à rua do comércio, onde também estavam os portos. Atravessou a rua e, a uma distância razoável, ficou observando o pai que exercia o seu desiderato de herói dos rios e barrancos do Acre.
Por ali ficou pouco tempo e, vendo próximo um grupo de meninos que jogavam peteca, ainda nu, sentou-se à beira da calçada e passou a apreciar o jogo, quietinho, apenas balançando as pernas que ainda não tocavam o chão.
Quatro vezes por dia, passava pela porta da casa um português muito educado que, lógico, conhecia bem o menino e lhe dava pirulitos de cortesia. O nosso bom homem, que exercia a função de caixa no comércio do irmão rico, de longe avistou aquele negrinho nu e o reconheceu.
– Mas vejam só! Aquele mulatinho é o peralvilho, filho do estivador fortão. O que estará ele a fazer ali tão pequenino, sozinho, a uma hora dessas? – Disse o homem de Portugal em sotaque alentejano bastante carregado.
O portuga se aproximou do menino que o reconheceu em vista do pirulito que já lhe estava à mão. Foi quando a mãe, já aflita, chegou e, sofregamente, agradeceu a gentileza do bom homem que, na cidade princesa, ainda hoje é lembrado por muitos pela simpatia e educação.
Mais ou menos dali a uns dois anos, o peralvilho saíra com a mãe e o irmão mais velho. Tomaram banho, vestiram roupinhas limpas, e foram à casa de uma senhora que cobria botões, na rua do comércio, ao lado da pensão de Carmem. A mãe deixou os dois sentados no batente da porta e, ao entrar, disse:
– Fiquem quietinhos. Não saiam daí. Mamãe vai lá dentro. A dona Esmeralda vai cobrir uns botões que eu trouxe. Volto já.
Ao cabo de um ou dois minutos, o menino mais velho já se entretinha apreciando o movimento da rua do comércio, enquanto o mais novo já se afastava um pouco de onde estivera sentado junto do irmão.
A uns poucos metros dali, havia uma mercearia e lá estava um homem moreno que lhe ofereceu bombons:
– Ei, meninozinho! Eu sou seu tio. Você quer bombons?
De pronto, o peralvilho não apenas aceitou as guloseimas oferecidas, como se agarrou à mão do estranho. Dali, saíram os dois pela rua das mangueiras, no rumo do cemitério municipal. E se foram…
A mãe, ao sair da modista, ficou muitíssimo alarmada. Perguntou ao tranquilo menino mais velho sobre o paradeiro do moleque sangue bom, ao que ele nada respondeu, uma vez que se distraíra completamente.
E começou o desespero, agora, já com a participação total da família e vizinhos da rua das castanholas. O pai estivador partiu à procura do peralta de marca maior. Foi um Deus nos acuda.
Acontece que o anjo da guarda do bambino d’oro acordara-se naquela hora e agiu prontamente.
O tio, zagueiro de área do América Futebol Clube, voltava do seu trabalho de pedreiro em uma escola exatamente no rumo da estrada para onde rumara o autor do rapto do menino dourado.
Ao ver aquele moreninho vindo ao seu encontro pelas mãos de um desconhecido, logo o tio o reconheceu e perguntou:
– Para onde você vai levando este menino?
Ao que o homem respondeu:
– Este menino é meu filho! Ele mora comigo e a mãe dele no Seringal São João do Karamanu, na Bolívia.
O tio, alvoroçado, agarrou a pá de pedreiro e partiu para bater no desconhecido que largou a mão do menino e saiu correndo estrada afora.
O peralvilho foi colocado no tuntun do tio e este logo chegou à casa da família trazendo-o como se o menino fosse um troféu conquistado nobremente com armas na mão, como nos versos do Dr. Chico Mangabeira.
Em síntese, se não fosse pela ação do tio, hoje o peralvilho muito provavelmente teria nacionalidade boliviana, o que seria um desastre.
Lembro-me que, de outra feita, em fins dos anos dourados, era prefeito da cidade princesa um homem muito elegante, que tocava saxofone em tempos de carnaval.
O pai estivador mandara fazer uma calçada novinha, lisinha, de cimento queimado, na frente da vivenda da rua das castanholas. Era por ali que, quase diariamente, passava o prefeito músico admirando a qualidade do serviço do passeio público e, talvez, vendo as possibilidades de melhoria daquele logradouro.
O peralvilho, mais uma vez, estava agarrado à grade de madeira que o impedia de alcançar a rua. No exato momento em que o prefeito passava, ele acabara de descascar uma banana cuja casca foi imediatamente atirada na calçada lisa.
Não deu outra. O meu querido amigo saxofonista educado escorregou com os dois pés para frente e estatelou-se no chão duro de uma forma que ficou, momentaneamente, de bunda pra cima.
Elegantemente, o homem se levantou, tirou do bolso um lenço, passou-o em alguma sujeira produzida pela queda e, vendo ter sido o menino o autor da casca de banana, foi lá, acariciou-lhe o queixo e ainda lhe deu um beijo na cabeça.
Antes de seguir, usando aquele vozeirão de contrabaixo, disse o Félix Pereira:
– Ah, moleque! Este vale por dois ou três.
CLÁUDIO MOTTA-PORFIRO, Escritor. Autor do romance O INVERNO DOS ANJOS DO SOL POENTE, disponível nas livrarias Nobel, Paim e Dom Oscar Romero, ou pelo e-mail claudioxapuri@hotmail.com