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Segundo todo mundo, o problema deve ser eu

Chego no trabalho, ligo a cafeteira e preparo o café. Enquanto a cafeteira ferve a água, ligo o computador e abro os principais sites de notícias. As manchetes, dos mais variados tipos, cores e tamanhos, destacam questões políticas e de entretenimento.

Pego a xícara e tomo alguns goles, analisando as principais notícias, que, de acordo com as equipes editoriais, são as que mais merecem atenção: A transferência milionária do jogador de futebol, o beijo de língua da personagem da novela, a volta do menino alquimista desaparecido. Minhas sobrancelhas cerram e eu queimo a língua numa reação involuntária, já que não me empolguei nada com tais fatos, apesar desses fatos serem fundamentais para o bom andamento das conversas nas redes sociais. Se todo mundo está dizendo que isso é importante, então deve ser mesmo. Nitidamente, o problema deve ser eu.

É curioso o fato de que existam indústrias complexas de informação e divulgação de conhecimento, definindo os níveis de relevância de questões relativas à vida cotidiana. Enquanto estamos caminhando, tomando um ônibus ou dormindo, outras pessoas estão trabalhando, produzindo e inspirando reflexões sobre amor, comida, decoração e família. Tudo aquilo que não consegue sequer uma nota de rodapé no jornal do dia. E isso caracteriza uma sociedade secreta, composta por todo mundo, que como eu, gostaria de ler e ouvir outras coisas. Coisas que talvez tenham mais importância, que talvez a gente devesse priorizar.

Há cerca de 13,5 bilhões de anos, a física era tudo o que importava. A matéria, a energia, o tempo e o espaço eram os elementos que definiam o que era importante, e o desenvolvimento da humanidade foi sendo capaz de relativizar o que todos aprendemos, quando pequenos, na escola: A química, a biologia, a filosofia, a revolução cognitiva, agrícola, científica. Nos dias de hoje, temos muitos motivos para refletir sobre liberdade, as relações humanas, a solidariedade e a gentileza; só assim será possível modificar nossas próprias atitudes, aperfeiçoando as formas de ver o mundo na prática. E isso é viver! Qualquer pessoa apostaria, facilmente, que os homens das cavernas, se tivessem tais oportunidades, não perderiam seu tempo lendo sobre o lançamento da nona versão do smartphone da empresa bilionária. Aproveitariam sua vida, pasmem: vivendo.

Tomo o último gole de café e fecho o site de notícias. Decido ir no jardim externo do local onde trabalho, observar as flores e os pássaros. Não consigo me concentrar. Várias pessoas falam alto e discutem a situação econômica do governo, pois é uma situação que envolve todos e é urgente. Desisto e volto a trabalhar. Como sempre, o urgente não deixa tempo para o mais importante.

Paulo Victor Poncio de Oliveira
victormanfredine@gmail.com

A Gazeta do Acre: