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os ‘varadouros’, quem diria, foram um grande empecilho para a integração terrestre do acre* (segunda parte)

Embora tivesse sido criada para promover a integração entre os departamentos acreanos e ajudar a desenvolver a incipiente agricultura praticada no Acre no início do século XX, a Comissão de Obras Federais do Território do Acre atuou mais para atender aos interesses do Governo Federal do que as necessidades dos seringalistas que comandavam a vida econômica e política do território recém-incorporado. Uma prova disso foi o fracasso na desobstrução dos rios, a maior reivindicação dos seringalistas estabelecidos por todo o Acre.
Estava claro para todos que a construção da estrada ligando Cruzeiro do Sul a Sena Madureira não ajudaria a incrementar a produção de borracha no Acre, pois o escoamento da mesma era feito pelos rios diretamente para as praças de Manaus e Belém. Na vinda, os navios que levavam a borracha chegavam ao Acre abarrotados com toda sorte de mercadorias adquiridas pelos seringalistas para ‘revenda’ a preços exorbitantes a uma clientela ‘fiel’: os seringueiros e suas famílias.
Isso explica o grande interesse nos trabalhos de desobstrução dos rios e a percepção por parte dos então ‘donos do Acre, de que a construção de estradas e a abertura de áreas agrícolas não trariam benefícios econômicos para eles.
Como dito anteriormente, a forma paralela dos rios acreanos seguindo em direção a Manaus e Belém forjou realidades econômicas independentes e identidades políticas distintas entre os centros econômicos acreanos de então: vale do Juruá (Cruzeiro do Sul e Vila Seabra/Tarauacá), vale do Purus (Sena Madureira) e vale do Acre (Rio Branco e Xapuri).
Para piorar a situação, o Congresso havia aprovado legislação que destinava 5% do imposto federal arrecadado sobre a produção de borracha para a Comissão de Obras Federais, ignorando um apelo dos prefeitos acreanos da época (Alto Juruá, Alto Purus e Alto Acre) para um incremento nos recursos federais repassados diretamente às prefeituras.
Assim, pode-se dizer que a atuação desta Comissão no Acre enfrentou não apenas a oposição da elite econômica local, mas também uma velada oposição política por parte dos administradores nomeados pelo próprio Governo Federal.
Críticas abertas à construção da estrada eram comuns nas páginas da imprensa na época. Em editorial do dia 13 de novembro de 1910 o jornal ‘O Município’, publicado em Vila Seabra (Tarauacá), ressaltou as qualidades dos ‘varadouros’ – amplamente usados nas ligações terrestres em território acreano naquele período – e criticou duramente o plano de construção da rodovia:
“Se não desconhecessem os auxiliares do Dr. Bueno de Andrada [Chefe da Comissão Federal] o solo amazônico, hoje acreano, saberiam que as estradas desta terra são essas que fazem os proprietários de seringais, isto é, varadouros, onde não penetra o sol, que trás o tabocal e jurubebal, de que está cerrada hoje a tal estrada para andar automóvel (…)”
“Depois, para que nos serve uma estrada de vinte metros de largura d’aqui para o Purus? Dalí só poderá nos vir o correio trazer notícias e correspondências do Tribunal de Apelação e nada mais, porque Sena Madureira não é Manaus ou Belém, que nos envie mercadorias e braços materiais indispensáveis para o nosso desenvolvimento, assim como para lá só enviaremos processos e correspondências, sendo que para isso não é mais preciso do que um varadouro por onde o indivíduo venha e vá na sombra”.
Varadouro é uma trilha ampla, geralmente com 2 metros de largura aberta no subosque da floresta, e que no passado ligava os locais de extração de borracha (colocações) à sede dos seringais (barracão) situada na margem dos rios.
E foi a existência no Acre de centenas de quilômetros de varadouros interligando não apenas as sedes de seringais às colocações de seringa mais distantes, mas também os pequenos aglomerados habitacionais de então, um dos principais argumentos contra o grande investimento requerido para a construção da estrada. Também pesou contra, o modelo de estrada a ser construída. Para atender à legislação federal (Lei 1.453 de 30/12/1905), ela deveria ter no mínimo 7 metros de largura, 30 de raio nas curvas e suportar carga mínima de 14 toneladas.
Os seringalistas queriam que os recursos da Comissão de Obras fossem usados para melhorar os varadouros existentes e na construção de novos ligando os seringais às capitais dos Departamentos administrativos do Acre na época.
Seus apelos, entretanto, foram solenemente ignorados. E para convencer os céticos, logo que a Comissão Federal de Obras se instalou em Cruzeiro do Sul um dos integrantes da Comissão, o Deputado Cearense João Cordeiro, trouxe desmontado um automóvel que, segundo o seu plano, deveria ser usado no dia da inauguração da estrada: o prefeito do Departamento do Alto Juruá, Antônio Bueno de Andrada, deveria percorrer de carro a estrada para encontrar o seu colega, o prefeito Cândido Mariano em Sena Madureira, no dia de sua inauguração.
Claro que esse plano causou perplexidade no agora longínquo ano de 1908. E com toda a razão. Hoje, mais de 100 anos se passaram e a estrada ainda não foi concluída. Mas na época a imprensa não deixou barato. Uma charge** da revista ilustrada ‘O Alho’ (ilustrando este artigo) resume com fina ironia a incredulidade dos planos rodoviários da Comissão Federal de Obras no Acre.

Artigo continua…
*Texto baseado no artigo “A Força dos Varadouros na Amazônia: o caso da Comissão de Obras Federais do Território do Acre e as estradas de rodagem (1907-1910)”, de autoria de André Vasques Vital, publicado na revista “Fronteiras: Journal of Social, Technological and Environmental Science”, v.6, n°. 1, p. 22-44, 2017. André Vasques Vital é doutor em História das Ciências e da Saúde (Fiocruz, 2016) e Mestre em História das Ciências e da Saúde na mesma instituição (2011). O artigo, extremamente relevante e importante para quem se interessa pela história do Acre, aborda de forma criativa e inédita um aspecto da história acreana pouco tratada por nossos historiadores: a gênese da construção da ligação terrestre entre Rio Branco e Cruzeiro do Sul.

**Charge da revista ilustrada ‘O Alho’, publicada quinzenalmente em Cruzeiro do Sul entre 15/06 e 01/08/1908, reproduzida na página 29 do artigo “A Força dos Varadouros na Amazônia: o caso da Comissão de Obras Federais do Território do Acre e as estradas de rodagem (1907-1910)”, de autoria de André Vasques Vital.

 

*Evandro Ferreira é engenheiro agrônomo e pesquisador

do INPA/Parque Zoobotânico da UFAC

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