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O país que queremos. Ainda há juízes em Brasília

Ontem o país assistiu a mais um julgamento do Supremo Tribunal Federal como se estivesse vendo uma importante partida de futebol, uma final de Copa do Mundo. Nada obstante, como foi comum na vida do ex-presidente Lula, o caso não dizia respeito apenas a ele. O julgamento de ontem tratava muito mais do que isso. Ia além das partes do processo, valendo como resposta a duas perguntas: a Jurisprudência deve mudar conforme a parte que postula? E que sistema penal queremos?
Começando pela segunda, é desejável o sistema dos recursos intermináveis que permitem que réus confessos como Pimenta Neves fiquem vários e vários anos longe da prisão? Há processos que o final só chega após muitas dezenas de recursos. O ex-senador Luiz Estevão, por exemplo, manejou nada menos que 36 recursos, que lhe garantiram 17 anos de liberdade, que foi o tempo que durou seu processo. Em boa parte deste período, conseguiu fugir ao cumprimento de uma pena de 31 anos de reclusão.
A fala do Ministro Toffoli ontem foi emblemática nesse sentido. Ao tecer considerações sobre o trânsito em julgado da sentença (momento em que o processo se considera findo), o Ministro fez referência a interposição dos recursos especial e extraordinário. Depois, se negados, a propositura do agravo de instrumento. Na sequência, o agravo regimental e, depois, os embargos de declaração, que podem ser opostos em uma sequência que às vezes só se limita com a paciência do Magistrado, que não costuma ser pequena.
A intenção é clara: impedir a prisão ao máximo, alcançando-se a prescrição ou, ao menos, um futuro pleito de prisão domiciliar, dentre outros benefícios. Crimes graves, então, passam a comportar ridículas penas em concreto, que nada servem como exemplo, senão como estímulo a prática de novos delitos. Temos ainda um generoso sistema de prescrição, que atua mesmo quando o Ministério Público não fica inerte; e benefícios variados, que permitem ao Réu se livrar da prisão, ou reduzir bastante o tempo de seu cumprimento. Para se ter uma ideia, até resenha de livro pode ajudar na redução da pena a ser cumprida. Luiz Estevão mesmo, noticia-se, já fez dezenas de resenhas com este objetivo.
Ou um sistema, em que, passadas duas instâncias de ampla discussão probatória, com oportunidades às partes de fazer valer seus direitos e afirmações, será possível a prisão do acusado, dentro de um paulatino arrefecimento da garantia de presunção de inocência. O sujeito continua a ter a seu favor o benefício da dúvida, com possibilidade de amplíssimas discussões recursais nas instâncias superiores, como dito acima. Todavia, não poderá fazer isso em liberdade. Prossegue um generoso sistema recursal, que inclui, grosso modo, o ‘habeas corpus à brasileira’, mas com sensível redução das possibilidades de prescrição, e uma resposta estatal mais expedita, próxima do fato.
Não é preciso muito trabalho para imaginar qual sistema melhor atende a busca pela eficiência, sem prejuízo das situações limites, que podem ser prontamente corrigidas pelos instrumentos postos a disposição da Defesa. Caso a caso podem ser consertadas injustiças. Justiça tardia não é justiça, ainda mais na área criminal.
Neste passo o Brasil aproxima-se dos demais sistemas constitucionais. Em nenhum se tem a garantia da presunção de inocência para quatro instâncias de justiça. Só para o Brasil que assim se quer, o que motivou a referência, durante o julgamento, que esta era mais uma ‘jaboticaba’.
A questão, aliás, diz muito mais com os Réus poderosos, que historicamente se furtaram à aplicação da Lei Penal no país. E aqui se chega ao segundo questionamento: a jurisprudência pode mudar ao sabor de quem postula?
A esse respeito vale lembrar uma história retratada no conto “O Moleiro de Sans-Souci”, de François Andrieux, no longínquo ano de 1745. Nela, o rei Frederico II, da Prússia, pretendia construir um palácio de verão em Potsdam, próximo a Berlim. Tendo escolhido a encosta de uma colina, onde havia um moinho de vento, após tentar ampliar a construção, o Rei procurou comprar o moinho. Como o moleiro recusou a venda, o monarca disse-lhe que, se quisesse, poderia tomar-lhe a propriedade. O simples moleiro então respondeu: “Isso seria verdade, se não houvesse juízes em Berlim!”
O moleiro entendeu que a Justiça não o distinguiria do rei. Trataria do seu problema como era, e não pela parte que o postulava. É o que se espera da Justiça, que não altere sua jurisprudência, nem mesmo para reis e príncipes. Infelizmente, já vimos isso acontecer recentemente. Ontem, não. A decisão, surpreendente para mim, reacende, pelo menos, a esperança de que o sistema possa ter alguma eficiência, seguindo a ideia de que ainda há juízes em Berlim. Esperemos que haja juízes em Brasília, como ontem e para sempre.

* Ildon Maximiano é promotor de Justiça do Ministério Público do Estado do Acre

Fabiano Azevedo: