A discussão sobre o cárcere privilegiado do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o desabamento de um prédio de 24 andares abandonado pela União e ocupado por movimento social de luta por moradias dignas fez ressurgir entre o debate sobre a indecência do auxílio-moradia pago aos magistrados do Poder Judiciário. A conexão é óbvia, mas a narrativa falaciosa — e amnésica — é tão escandalosa quanto o penduricalho no contracheque dos juízes.
Em recente entrevista ao apresentador Pedro Bial, na Rede Globo, o ministro Luiz Fux, atual presidente do TSE e relator no STF das ações que discutem o pagamento de auxílio-moradia aos juízes federais, deu uma pista sobre aquela que deve ser a abordagem mais legítima acerca do tema: numa mesma cidade, um juiz que não tem casa própria e mora de aluguel, sem o recebimento do auxílio não estaria recebendo o mesmo salário que um juiz que fixou residência em imóvel funcional, provocando inconstitucional assimetria entre eles. Surge a expressão que clarifica o assunto e é curiosa e propositalmente esquecida pelos debatedores: imóveis funcionais.
Os Três Poderes da República possuem milhares de imóveis residenciais à disposição de seus servidores, efetivos ou não, e detentores de mandatos, eletivos ou não, que não tenham residência própria na localidade onde exercem suas funções. Como o Estado é um mastodonte que não para de crescer, a quantidade disponível de residências oficiais passou a ser insuficiente para atender à demanda cada vez maior de privilegiados com o direito à moradia custeada pelo erário. Esse desequilíbrio não começou ontem, como muitos querem fazer crer.
A discrepância entre demanda e disponibilidade de imóveis funcionais teve início quase meio século atrás, na década de 1970. Não por acaso, o Poder Judiciário buscou saná-la através do Art. 65, inciso II, da Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Lei Complementar nº 35/1979), aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo então presidente Ernesto Geisel, concedendo uma “ajuda de custo para moradia” aos juízes cujas Comarcas não dispusessem de residências oficiais, exceto nas Capitais. Sete anos mais tarde, o Congresso aprovou e José Sarney sancionou a Lei Complementar nº 54/1986, ampliando a abrangência da “ajuda de custo para moradia” para todas as localidades do território nacional nos termos da nova redação dada ao supramencionado inciso. Atualmente, o valor fixado na esfera federal para juízes e promotores é de R$ 4.377 por mês.
A pergunta é: só os juízes têm esse direito? Chegamos ao ponto nevrálgico da questão. Quando a deputada fulana ou o senador beltrano descem o sarrafo no lombo dos juízes federais que recebem auxílio-moradia, eles esquecem de informar ao respeitável público que, como parlamentares, também têm esse benefício. Provavelmente sofrem de amnésia seletiva, patologia contagiosa causada por um vírus que também ataca jornalistas, analistas e comentaristas de Política. A vacina contra essa doença é gratuita e está disponível nos dados públicos oficiais dos Três Poderes.
A Câmara informa dispor de 432 imóveis funcionais destinados à residência de deputados federais em mandato efetivo, sendo que 10% deles estão desocupados. Ou seja, dos 513 deputados, 388 não têm gastos com moradia, pois habitam uma residência oficial do Poder Legislativo. Os demais 125 deputados recebem um auxílio-moradia mensal de R$ 4.253.
Já o Senado Federal possui 72 apartamentos funcionais com cerca de 180 metros quadrados cada um, em área nobre de Brasília. Entretanto, dos 81 senadores, apenas 34 optaram por morar nesses apartamentos. Outros 34 preferem não utilizá-los e também abriram mão do auxílio. No entanto, de acordo com os dados oficiais divulgados no último dia 30 de abril, há 13 senadores que recebem o auxílio-moradia no valor de R$ 5.500, penduricalho que pode ser justificado com recibo de aluguel ou nota fiscal de uso de quartos de hotel ou flat, ainda que o Senado possua 38 unidades disponíveis aos seus parlamentares.
Por fim, o Ministério do Planejamento informa possuir, apenas no Distrito Federal, 242 condomínios à disposição do Poder Executivo. São centenas de imóveis funcionais, custeados pelos cofres públicos, utilizados como moradia gratuita por agentes políticos e servidores públicos federais com amparo legal no Decreto nº 980/1993 assinado pelo então presidente Itamar Franco. O Art. 5º da citada legislação abre um leque sobre quem pode requisitar tal moradia: vai de ministros de Estado a membros das Forças Armadas, de servidores efetivos a ocupantes de cargos comissionados DAS 4, 5, 6, de Natureza Especial ou equivalentes. Vale ressaltar que, na indisponibilidade de imóveis funcionais, o servidor federal também recebe um auxílio-moradia equivalente a 25% de seu salário. Ministros, por exemplo, podem receber R$ 7.700 por mês a título de “ajuda de custo para moradia”. Noutras palavras, uma farra!
Parêntese relevante. No início de 2018, reportagem investigativa da jornalista Heloísa Torres, para a Rede Globo e o portal G1, descobriu uma barbaridade: entre os moradores dos imóveis funcionais do Poder Executivo há ex-servidores federais que pegaram as chaves nas décadas de 1970 e 1980 e há duas décadas não têm mais o direito de ocupar as unidades. Mas, continuam lá, morando às custas dos cidadãos brasileiros pagadores de impostos. Esses imóveis custam cerca de R$ 1 milhão, o aluguel poderia chegar a R$ 4.000 por mês e todos têm, pelo menos, três quartos e ficam nos melhores bairros de Brasília. Neste momento, há 79 ações judiciais onde a União tenta reaver imóveis ocupados ilegalmente por ex-servidores. Uma excrescência, em suma. Fecho parêntese.
Portanto, sem embargo ao fato de todas essas benesses serem revoltantes do ponto de vista de um Brasil pobre e solapado por uma casta de privilegiados, quando algum oportunista decide abrir fogo apenas contra o auxílio-moradia pago aos juízes federais, o faz por ignorância da realidade e ausência de dados oficiais, ou por pura má-fé, como no caso de parlamentares palanqueiros que usam as redes sociais para apontar a profundidade do umbigo alheio e promovem brutais fake news diuturnamente.
Combater as fake news vai além de caçar no submundo digital pessoas ou grupos que criam e propagam informações inverídicas com objetivo de aferir lucros financeiros ou para beneficiar este ou aquele candidato. O caso específico do auxílio-moradia pago aos juízes, da forma como é tratado pela mídia e por políticos ideologicamente interessados no enfraquecimento do Poder Judiciário, é uma das maiores fake news já propaladas no Brasil. Não por ser uma informação falsa, afinal o auxílio-moradia existe, custa caro aos cofres públicos e é um escárnio às dezenas de milhões de miseráveis deste país. É uma fake news porque distorce dados oficiais para construir um pensamento conveniente, cria alcunhas palatáveis para ocultar verdades que causam má-digestão. É uma fake news porque escamoteia a realidade sob o pretexto de cumprir o direito/dever de informar.
A desonestidade intelectual como instrumento de exploração da ignorância é a raiz existencial de uma fake news. Não é diferente quando sujos e mal lavados, rotos e esfarrapados, vociferam contra o auxílio-moradia e outros penduricalhos pagos pelo Poder Judiciário. Amnésia seletiva de boquirrotos e midiáticos é igual cobra-coral: bonita, mas tão venenosa quanto uma naja. Para o bem do debate e dos argumentos, sejamos intelectualmente honestos, ok?!
* Helder Caldeira é escritor, autor dos livros “Águas Turvas”, “O Eco”, “Pareidolia Política”, entre outras obras.
www.heldercaldeira.com.br – [email protected]