“O que sei eu da dor que carrega? Também eu
me atrapalho ao lidar com os meus próprios ferimentos”
Como eu lhe queria bem! E ao seu sorriso farto, sua presença, sua família, seus talentos, seu jeito de ser. Era minha amiga. Das preferidas. Tão bons papos, tão ricas trocas, tão gostosas risadas. Assim por muitos anos.
Mas houve o momento em que surgiu um delicado conflito entre nós. Cada qual com suas razões e enganos, atravessamos um doloroso atrito. E vimos emergir, em cada uma, o medo. Vieram à tona as nossas sombras, nossas defesas contundentes: atitudes de desprezo, ironias, veladas disputas de poder.
O encanto se foi, a admiração se transformou em sentimento de ameaça e o bem-estar se tornou tensão.
Assim por algum tempo, até que a situação crítica se dissolveu, não sem antes provocar um afastamento emocional e físico entre nós.
Certo dia, entretanto, percebi que minhas queixas tinham se abrandado e a raiva havia ido embora. Consegui ver sua beleza de novo, senti saudades, quis me reaproximar.
“Já conhecemos o melhor e o pior de nós, devemos estar mais cientes da nossa fragilidade humana. Talvez agora possamos manter um vínculo mais maduro resistente”, cogitei. E lhe estendi a mão, com carinho e esperança.
Um olhar gelado de viés, um meio-sorriso de escárnio, o corpo duro e fechado ao perdão mútuo. Assim me recebeu, certamente presumindo que ganhava o jogo, sem perceber o alto preço pago pela máscara de superioridade: o congelamento gradual de suas emoções.
Enxergando através de sua armadura, uma vez que já espiei para dentro da minha, sei o que há nela. Uma menina ressentida, que diz: “Você não vai me machucar de novo”. Ainda assustada com as mágoas da infância. E se esquecendo de que também aprendeu a arranhar.
Que me resta? Respeito. O que sei eu da dor que carrega? Também eu me atrapalho ao lidar com os meus próprios ferimentos. E me afasto novamente, sem constranger, nem ser constrangida.
Mas não me arrependo de ter seguido um impulso do coração, ao procurá-la. Porque nele está presente o afeto, verdadeiro, que é possível encarcerar mas nunca destruir. E cuido de reservar, em meu peito, um espaço de paz onde, quem sabe, um dia, poderemos nos reencontrar num longo e sentido abraço.
Onides Bonaccorsi Queiroz é jornalista, escritora e autora do blog verbodeligacao.wordpress.com
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