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O livro do óbvio segundo a inominável Prima Louise

Em verdade vos digo. Choro um olho e lacrimejo o outro. Por ela os meus sinos dobram, a poesia flui, o para-choque enrijece e os sonhos se tornam muito úmidos, ou até melados mesmo. Creio até que não é nenhum pecado esticar os olhos, e o algo mais, no rumo de uma prima maravilhosa, principalmente, quando ela não é flor que se cheire, mas que se coma, do cálice ao androceu passando pelo gineceu e as pétalas.

Desci dos aposentos às onze. Uma senhora passada na casca do alho, com jeito de vedete dos anos sessenta e dentinhos proeminentes de bruxa, dada a violência das vassouradas, expulsava demônios ao varrer a parte que lhe cabe da calçada da alameda onde moramos. Cumprimentamo-nos sem alarde e sem mais delongas pelo medo que ainda tenho de pegar um quebranto, ou um mal de reza qualquer. Nunca se sabe. Um passe de macumba anda pela hora da morte. Para marcar um pontonum terreiro, hoje em dia, é preciso obedecer ao que prescreve a agenda da minha ialorixá mais linda do Brasil. Saravá!

Nem queria, ou quase, mas atravessei a avenida e fui ceder galanteios e mesuras ao monumento à natureza que responde aos meus ais pelo nome de Prima Louise. Um doce, às vezes, principalmente, quando está sem grana para o almoço, posto que o jantar é suspenso ou trocado por um tal chá verde em nome da manutenção da silhueta de musa.

Ela havia amanhecido como todos os dias. Ancas largas, pernas torneadas, peitos perfurantes, barriguinha lá dentro, cabelos negros como a asa da graúna, sobrancelhas desenhadas, biquíni vermelho devastador, sorriso de mel e degustando a brisa que vinha do mar àquela hora da manhã. Um arraso.

Não havia saído na noite anterior. A cara estava ótima e, já sintetizando, sem um tostão, posto que era quinta e o amante endinheirado só aparecia na sexta depois da meia-noite. Desocupada como eu, fomos em busca do supermercado onde comprei cervejinhas e um queijo vindo das estranjas. Daí, atravessamos o calçadão e já estávamos sob o guarda-sol Hilton. Nem preciso falar da minha libido aos pulos e aos gritos, berrando, feito louca, horrorizada com a minha falta de atitude.

Louise nasceu em uns sertões muito longínquos, assim mais ou menos mil milhas depois do inferno da pedra, ou de onde o cão perdeu as botas. A beleza é resultado de uma mistureba que envolve libaneses, armênios, espanhóis e índios amazônicos. Formada na arte de passar em cartório o conto do vigário, muito cedo foi sentar praça na cidade grande. E deu certo. Garantiu um bom apartamento, a cem metros do mar. O amante é um sexagenário cheio da grana e ela se comporta muito bem em meio ao vuco-vuco próprio de quem nasceu quase partícipe de movimentos frenéticos, suspiros intensos e olhinhos revirando.

Minha fã ardorosa, muito cedo daquela quinta, ela já havia acessado a internet e visto as minhas postagens sempre eivadas de duplos sentidos e mão única, além das tiradas sacanas que marcam o meu estilo literário.

Então, ela tascou no pé da minha lata, na maior cara dura:

– Devo lhe dizer, querido, que você posta essas crônicas imensas porque é um sacana muito metido a-não-sei-o-quê. Quer ser demais.

Ao que eu contra argumentei:

– Aceito. Só que você nunca leu um texto meu completamente. Sempre dá uma olhada na introdução e outra na conclusão. Pensando bem, uma pessoa que nunca leu um livro jamais será tão afoita ao ponto de ler uma coisa enorme dessa, de cinco laudas.

– Você está voando geral. Não entendeu o meu convite para o almoço no Belmonte pago por você, é claro. Se existe uma coisa que homem pega no ar, é gripe. O resto tem que vir tudo explicado, mastigado, desenhado, depilado. Porra!

Durante o almoço, ela desatou um rosário de frases de efeito. Boa parte era relacionada aos encontros frugais quando da ausência do bode velho endinheirado.

– Meu caro. Depois de um périplo por esta vida de mariposa, agora, já quase balzaquiana, encontrei algum sossego. Mas ainda digo que o grande segredo que envolve os relacionamentos é você não esperar muita coisa de homens ou de mulheres. Eles são meros humanos erráticos e desenfreados. Simples assim. Toca pra frente. Empurra o pau.

Realmente, a vida deu uma boa guinada para ela. Sem noção e bêbada, vivia urrando e pedindo dinheiro emprestado, se achava politicamente correta e afirmava, com uma categoria impressionante, que a direita é a nossa saída, porque a esquerda é nervosa demais.

O ranço político partidário ainda hoje a leva a acreditar que as reais saídas para essa situação de calamidade em que os brasileiros se meteram, levados pelas elites que só querem os dividendos polpudos, estão no fator patriotismo. Analisemos uma das mais belas tiradas que eu já ouvi:

– Meu preto. O Brasil pode ser cafetão ou puta, mas é a minha mãe amada. Sou apaixonada por esta porra de torrão. Com ela, eu como o pão que o anjo bom amassou, ou a tapioca em que o diabo esfregou o rabo em cima. Posso até vir a trabalhar, coisa que eu nunca fiz. Monto um cabaré. Pronto.

É deveras impressionante ela escorregar de um assunto para o outro sem pestanejar e sem rodeios. Um bom gole de chope e já a verve sopra em outra direção feito vela que muda de rumo ao sabor dos ventos. (Onde ela aprendeu tanto?)

– O meu coroa e meu dono é o exemplo de um homem que venceu por méritos próprios. Diz ele que nunca enganou ninguém e eu acredito porque ele quer que eu acredite. Imagine um advogado com escritórios nas três mais importantes capitais brasileiras. Difícil, hein.

Depois do divórcio, a esposa anterior teria raspado o tacho e estava na pindaíba. Ela e os dois filhos, já adultos, teriam ficado com a metade de tudo. Enquanto eles quebraram, depois de oito anos, o coroa foi suficientemente competente para quintuplicar o que lhe ficou por direito.

A Prima Louise é linda em qualquer posição. Percebe-se, por exemplo, a partir do jogo de frases abaixo:

– Em dezembro, se Vênus ajudar, vamos fazer uma viagem de cinco meses pela Europa, Ásia e Pacífico Sul. É o que eu deixei bem claro dia desses: coroa rico e extremamente saudável tem mesmo é que gastar com puta. Melhor que deixar a grana para os filhos ficarem fazendo confusão. Deixa está!

Segundo ela, o coroa (que não é tão coroa) é o tal.

– Brother! Ele é do tipo que passa duas horas nas preliminares e depois faz alguma coisa interessante para ele, ou dorme. E isso me completa. É o amante perfeito, até porque, a essas alturas dos acontecimentos, eu já desmaiei dez vezes. Cá entre nós, sexo é igual futebol: o camarada tem logo que cair de boca no gramado.

Olhos vesgos, língua trôpega. Louise estava feliz e eu empolgado. E ela sapecou:

– Eu e ele morreremos juntos, um dia. Somos a corda e a caçamba. Já ouviste dizer que a diferença entre o advogado e a prostituta é que esta última deixa de extorquir depois que o amante morre. Então.

Já com as mãos dadas, de frente a frente, olho no olho, um em cada lado da mesa, ela disse que eu estou encarregado de escrever as suas memórias e o título do best-seller será O livro do óbvio segundo a inominável Prima Louise.

Como a felicidade não entra em pernas fechadas, depois do almoço, já noite alta, tomamos a rua Gustavo Sampaio e jamais diremos quem foi pra casa de quem, até porque ninguém tem nada a ver com isso. Ora essa!

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CLÁUDIO MOTTA-PORFIRO

Escritor. Autor do romance O INVERNO DOS ANJOS DO SOL POENTE, disponível nas livrarias Nobel, Paim e Dom Oscar Romero, ou pelo https://www.facebook.com/claudio.porfiro >

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