Andava talvez em círculos. Lia prosa e recitava verso. Dobrava duas ruas à esquerda, e mais uma. Olhava, depois, sorrateiramente, para as da direita, uma vez que lá viviam amigos seus de alta linhagem em almas orgulhosas de freiras virgens. Entrava na padaria e de lá saía em alta velocidade, correndo muito, para que o pão não esfriasse. Mais tarde, ele viria a dizer ao mundo que nem classe média era. Apenas e tão somente houvera se tornado uma espécie de muhammad ali, que ataca bem, se esquiva com perfeição e defende muito melhor.
Observou, então, que, desde menino, enquanto lia – ou comia, vorazmente, feito traça doida – a biblioteca inteira, muitos ao redor claudicavam, tropeçavam feio, ou seja, andavam com a desenvoltura de patos mancos em terreiro enlameado, por pouco saberem sobre o que ainda hoje fazem os comentários mais esdrúxulos possíveis. Em verdade, muitos sabem o significado real de pouca coisa. Os mais novos e os de média idade, pois, nada leem de mais consistente e demandam todo o tempo a discutir sobre certas aleivosias, como o futebol que não praticam.
E o garotão de poucas voltas, gaúcho moreno, com corpo de rinoceronte e cara de crocodilo, dia e noite ligado no modo agressão, falava que o seu padrasto se dera muito bem no negócio do tráfico de entorpecentes. Era uma águia. Ganhava dinheiro com a competência de um banqueiro nova-iorquino. Sutil e demoníaco, como a Meryl Streep, em O diabo veste prada.
– Ora essa! O meu avô só pode é tá doidão e não tem mesmo o que fazer. Já falei que não quero ser estagiário e muito menos, menor aprendiz. Não gosto nem de pensar na pindaíba que é viver com esse salariozinho de merda. Que porra é essa!?
Em casa – que era a mesma do avô – o exemplo mais dignificante da família dormia de dia, dava uns telefonemas à noite e, mais tarde, ia fazer o balanço dos estoques e a auditagem supimpa nas finanças do empreendimento de olhos vermelhos.
Nem se passaram muitos sábados ensolarados e já o moleque de dezesseis voltas, espertíssimo, por absoluta falta do que fazer, cumpriu o seu destino e montou o próprio negócio. Tinha tino. Faro apurado. Olhos e garras de onça maçaroca. Aprendera o suficiente no convívio familiar com um empreendedor nato que sabia o que fazia. Gostava de ouvir o tilintar do vil metal. O som era como um mantra aos ouvidos encerados do sacana predestinado, talvez.
A ele, pois, duas semanas depois, se juntou uma garota de treze anos com quem passou a dividir, no quartinho dos fundos, uma rede suja dita tipóia. Dormiam a sono solto e fornicavam nas horas mais apropriadas que eram todas. Os pais dela, certamente, estavam querendo se desvencilhar daquele trambolho de peitos grandes e ossos à mostra. Seria uma assessora ou gerente de alta competência, uma vez que até sabia passar troco e tomar anotações relativas ao movimento da mercadoria. Pense numa empresa pai d’égua!
De uma hora pra outra, não se sabe como(!), veio uma gravidez e a mocinha foi enviada, com o bucho já no pé da goela, de volta pra casa paterna. Coitada. Por lá fizeram-lhe um aborto e ela ficou mais feia que a coitada da fome que nem tinha culpa de nada.
Passados dois anos, já fazendo residência em colégio denominado onça-que-não-bebe-água, no Estado contíguo, buscava readaptar-se socialmente, posto ser criança muito maluvida. Nesse internato, pois, ele fez pós-graduação na arte de bater carteiras de aposentados velhinhos, dentre outras habilidades mais específicas. Algum tempo depois, empreendeu viagem duradoura a partir do muro alto e com cerca elétrica. (Ele era gordo e não se sabe como conseguiu escalar os cinco metros. Também não havia com o que pagar um helicóptero.) Nunca mais foi visto desde o século anterior. Dizem as línguas ferinas haver sido encontrado consumido por formigas em um matagal dos nossos subúrbios sociais. Urubus já ajudavam a devorá-lo a partir das tripas tenras. Coitado do avô Belisário, o homem que o queria burocrata do serviço público.
O avô era um cidadão simples, mas infatigável nos seus afazeres de auxiliar administrativo da secretaria dos portos. A mãe do rapazola, no entanto, era concupiscente e conivente com os desmandos do marido e com o aprendizado do filho. Agora choram. Não se sabe se os restos mortais encontrados na restinga seriam mesmo docara de cavalo, como era conhecido na região dos alpes gaúchos e catarinenses.
A mocinha ossuda tentou fazer vida na mesma função lá pelos lados do passo raso. Também foi apanhada com o rabo e a boca na ratoeira e foi servir de auxiliar de cozinha em um internato feminino lá pras bandas do Uruguai. Vai puxar trinta anos. Engordou, enfim.
Nem sei se deveria enfiar o senhor Saramago no meio de uma pendenga tão imoral. Ele que me perdoe. Mas vamos e venhamos. Conforme uma das grandes tiradas do escriba português gente finíssima, se a ética não governar a razão, a razão desprezará a ética.
Ora pois-pois. A família calamitosa nunca soube bem o que dizer para aquele meninão imenso desde os onze anos. Foi mimado a perder de vista. Tudo era dele e nada, da irmãzinha mais nova. O avô passava-lhe a mão na cabeça. A mãe não o deixava ir para a escola às segundas, porque estava cansado do fim de semana no sítio do vizinho, onde aprendeu a incrível arte de fumar maconha em cachimbo. Às sextas, ele faltava às aulas, porque já se preparava para a gandaia. Nunca passou da quinta série e, mesmo assim, diziam-no preparado para ser menor aprendiz, quando, na realidade nunca passou de menor infrator.
Nunca o menino feião ouviu falar a respeito de integridade, ou de responsabilidade. Ninguém lhe falou que todos devem ter respeito pelas regras do convívio social. Ele jamais soube que os cidadãos devem respeitar os direitos dos outros. A ele nada disseram sobre o amor ao trabalho, a respeito do esforço para poupar e investir, ou da vontade de ser produtivo, da pontualidade ou do orgulho do dever cumprido.
Alguns antigos até diriam que ele foi criado como Deus criou batata. Na marra, sem semente e sem adubo.
E este é o retrato da realidade brasileira. O caos está instalado porque, principalmente a ética, como princípio básico, não tem sido transmitida para as gerações mais novas e escritos como este, por mais tristes que possam parecer, jamais chegarão ao conhecimento da superior maioria dos que estão na escuridão dos desinformados. Em verdade, os pais pouco dizem e a escola não pode fazer mais que o que faz.
E vamos por aí observando que outros adolescentes, filhos de gente pobre, mas cheia do sentido da ordem, podem dizer, sim, que driblam isso tudo com bastante facilidade.
Deixa está. Nunca se pode esperar muita coisa dos humanos, posto que estes são meramente falíveis.
Cláudio Motta Porfiro é Escritor. Autor de O INVERNO DOS ANJOS DO SOL POENTE, romance, à venda nas livrarias Paim, Nobel e Dom Oscar Romero; ou pelo https://www.facebook.com/claudio.porfiro >