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Navegando para Ítaca

“Trazidos à força nos porões de navios, certamente muitos dos que aqui chegaram preferiram não ter conseguido”

       Alusivo ao mês da Consciência Negra, com a aquiescência da direção desta A Gazeta, abro espaço para artigo de autoria do professor Alexandre C. Barreto, filósofo e diretor acadêmico da Sinal Faculdade de Filosofia. Eis, na íntegra:

Em março de 1999 tramitava na Câmara dos Deputados o projeto de Lei nº 259 que em sua justificativa, dentre muitas coisas importantes, dizia: “é urgente e necessário desmistificar o eurocentrismo, neste momento em que se quer repensar um novo modelo de sociedade em que todos não somos apenas brancos…”. Sob este espírito nasceram as Leis nº 10.639 e nº 11.645/08 que alteraram a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional.

Ao Estado, em teoria e às vezes prática, tutor e espelho dos sentimentos e aspirações sociais, coube dar mais um passo, confirmando um sentimento difuso e legítimo de que o crescimento e o fortalecimento, sejam do indivíduo, de grupos ou mesmo da nação (escalas que se aplicam a todo este texto), impõe reflexões sinceras sobre o passado para compreensão do presente.

A plenitude da democracia ainda é uma utopia! Sim, é verdade que estamos ainda longe de alcançar alguns dos seus nobres ideais, mas podemos tentar uma abordagem desta questão com um olhar, digamos, um pouco filosófico.

Em 20 de novembro o país celebra o Dia da Consciência Negra. O que é consciência? De que forma ela é construída? A que dimensão social esta data se refere?

Conhecer algo é fruto de um processo no qual se conectam de um lado a mente e do outro o objeto estudado (aquilo que observamos). Vamos então pouco a pouco (como disse o poeta romano Ovídio, “adde parvum parvo magnus acervus erit”) percebendo aspectos do nosso objeto que se somam a todo o acervo de informações que acumulamos em nossa existência, e a forma como nos aproximamos dele (metodologia) é em grande parte responsável pela qualidade da nossa chamada visão de mundo – como já foi dito, seja do indivíduo, de grupos ou mesmo de uma nação.

Por serem diferentes, as experiências com o mundo produzem diferentes opiniões e tomamos decisões apoiados nelas. Decisões são escolhas de ação, opções que adotamos e que, em geral, refletem os nossos desejos e valores, o nosso ethos. Alguns desejos mudam com o tempo e alguns valores também. Por quê? Por que ao apreendermos a cada momento novos aspectos da realidade e refletirmos sobre eles, nos tornamos diferentes, mudamos de comportamento. E isso, se feito de forma apropriada, além de inevitável é bom.

Aventurando-me no campo da perspectiva sociológica e na simbologia do 20 de novembro, em seu sentido parece presente a fusão fértil de duas dimensões: o resgate da historicidade e o papel do legislador no aperfeiçoamento da nossa jovem democracia.

Considerando a historicidade não só relacionada aos fatos do passado, mas também à forma como a sociedade hoje é capaz de conhecê-los e interpretá-los, concepções sobre os componentes da formação deste amálgama chamado de sociedade brasileira vêm se desvinculando lentamente de compromissos ideológicos que ao longo de muitas décadas represaram práticas metodológicas fiéis aos paradigmas da modernidade, responsáveis pela desconstrução de lendas, mitos e preconceitos.

Embora a escravidão já existisse nas sociedades do próprio continente africano em épocas anteriores ao período colonial brasileiro, a desumanização, amparada na teoria de que a África seria uma terra sem história ocupada por selvagens que viviam em permanente estado de barbárie, usada para inocentar a consciência moral européia, foi uma das marcas profundas desta diáspora, produzindo efeitos devastadores tanto nos grupos de cativos trazidos ao Brasil, quanto em sua origem.

Pessoas sendo transformadas em simples mercadoria em leilões, a força de trabalho de milhões de homens e mulheres que deixou de ser utilizada no desenvolvimento econômico de suas próprias sociedades. Milhões de órfãos deixados para trás. Seres humanos, com sonhos e sentimentos, vendo-se impotentes diante da destruição de tudo aquilo que dava sentido às suas vidas.

Trazidos à força nos porões de navios, certamente muitos dos que aqui chegaram preferiram não ter conseguido.

Uma África minada e enfraquecida, cada vez mais frágil e vulnerável à cobiça estrangeira, um continente que por séculos foi condenado a um desenvolvimento incipiente.

A autoridade deste pano de fundo nos exorta a repensar a história e a valorizar o que de fato faz parte dela. Assim, ao vermos inseridos em nosso ordenamento jurídico dispositivos que disciplinam e universalizam este saber, encorajando e abrigando os fundamentos de um pacto social, garantindo o caráter inalienável dos direitos fundamentais indispensáveis ao pleno exercício da soberania popular, a democracia ainda é possível e o que temos de melhor. Consciência negra representa muito mais que uma resposta política, é um valor e uma escolha, é a confirmação que, assim como Ulisses sobreviveu a Poseidon e suas tormentas, conseguindo chegar aos braços de sua amada e fiel Penélope, devemos continuar navegando em direção à Ítaca.

Francisco Assis dos Santos é humanista

E-mail: assispro@yahoo.com.br

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