Há uma série de artigos do Estatuto do Índio que podem ser utilizados de modo a prejudicar a fruição dos direitos dos povos indígenas
Por diversas vezes, o presidente eleito em 2018 Jair Messias Bolsonaro mencionou a intenção de promover a “integração” de povos indígenas à sociedade. Mais recentemente, disse que poderá rever a demarcação de terras indígenas que possuem riquezas naturais como, por exemplo, a Terra Indígena Raposa Serra do Sol em Roraima. Aliados do presidente eleito e prováveis membros do seu governo, como a pastora Damares Alves, também se posicionaram a favor da evangelização de povos indígenas. O discurso de extrema direita de Bolsonaro e seus aliados chega agora às esferas administrativas decisórias do País. Ao que tudo indica, o Brasil reavivará, em certa medida, a política “integracionista” da ditadura militar e, preocupantemente, não precisará aprovar nenhuma nova lei para isso.
Vigente até hoje, o Estatuto do Índio (Lei 6.001/73) foi publicado durante o governo de Emílio Garrastazu Médici, sob a égide do Ato Institucional nº 5 e o período mais feroz da ditadura. Esse Estatuto tem como fim regular a situação jurídica dos indígenas de modo a preservar sua cultura e “integrá-los, progressiva e harmoniosamente, à comunhão nacional”. Em consonância com a política indigenista assimilacionista da época, tinha como objetivo principal fazer com que os índios abandonassem seu modo de vida tradicional para se converterem em trabalhadores rurais. Com isso, se liberaria terras indígenas para a construção de obras de infraestrutura e exploração de atividades econômicas, passo necessário rumo ao “progresso” e o “desenvolvimento nacional”.
A política que essa Lei encampa teve resultados desastrosos para os índios. Ao invés de servir à proteção ou integração dos povos indígenas, deu respaldo jurídico a contatos interétnicos desastrosos e remoções forçadas de comunidades, acarretando prejuízos para a perpetuação dos seus modos de vida tradicionais e levando ao fim de etnias inteiras.
Ambivalente, ao mesmo tempo em que conferiu direitos aos povos indígenas, o Estatuto do Índio também os expôs ao arbítrio do Estado por meio da ideia de que o indígena seria tutelado. Essa legislação indigenista permite remover indígenas de suas terras por decreto e regula direitos inerentes à identidade indígena. Por esse motivo, sem necessidade de aprovar nova legislação, apenas disputando a interpretação sobre a aplicação de artigos do Estatuto do Índio, o governo Bolsonaro poderá oferecer grave ameaça aos povos indígenas.
Há uma série de artigos do Estatuto do Índio que podem ser utilizados de modo a prejudicar a fruição dos direitos dos povos indígenas, sendo os direitos territoriais dos indígenas os principais alvos do próximo governo. O artigo 20 do Estatuto permite, por meio de decreto do Presidente da República, que a União intervenha em áreas indígenas. Tal intervenção pode levar à aplicação de três medidas: a contenção de hostilidades, o deslocamento temporário de grupos tribais ou a remoção permanente desses grupos. A legislação autoriza que essa intervenção ocorra nas hipóteses em que, por exemplo, for necessário: I) impor a segurança nacional; II) realizar obras públicas que interessem ao desenvolvimento nacional; III) reprimir a turbação ou esbulho em larga escala ou; IV) explorar riquezas do subsolo de relevante interesse para a segurança e o desenvolvimento nacional.
É fácil perceber como o futuro governo pode explorar o conteúdo dessas normas de modo a revestir de legalidade interesses econômicos ou delírios nacionalistas de quaisquer tipos. Deslocamentos e remoções forçadas por meio de decretos e fomento a disputas judiciais sobre terras já demarcadas de modo turvar certezas jurídicas e criar constrangimentos que levem à total insegurança jurídica e fática. Ao se referir ao caso da Reserva Raposa Serra do Sol, o futuro governo já ofereceu, antes mesmo de tomar posse, que tipos de motivações tem para desfazer demarcações de terras: são principalmente aquelas que poderiam ser enquadradas nas hipóteses I, II e IV aqui listadas, que se referem à soberania nacional e o desenvolvimento econômico.
O artigo 21 do Estatuto do Índio também oferece riscos aos direitos dos índios nas mãos do futuro governo que se aproxima. O dispositivo permite que a União declare terras espontânea e definitivamente abandonadas por indígenas como de sua posse e domínio pleno, desde que haja proposta da Funai para isso. Com esse órgão povoado por pessoas alinhadas com a política assimilacionista prometida, não é improvável que a própria Funai acuse povos indígenas que ocupam territórios de grande extensão de terem abandonado suas terras, o que motivaria a retomada da posse e do domínio delas pela União. Se combinado com os artigos que tratam da colônia agrícola indígena, o artigo 21 pode se tornar ainda mais ameaçador, vez que é possível tornar esse tipo de área reservada instrumento de negociação para deslocar grupos indígenas sob a promessa de melhores condições de vida, “integração” ou riquezas materiais.
O Estatuto do Índio foi produzido sob a égide de um governo ditatorial e mal orientado em relação à temática indígena. Além das diversas hipóteses legais que oferta para a intervenção federal em terras indígenas, também relativizou a condição jurídica de indígena. Essa lei estabeleceu 3 graus de aculturação que vão desde o isolamento, passando pelo processo de “integração”, até a concretização desta, a qual culminaria com o pleno exercício dos direitos civis.
Sem fixar critérios específicos sobre o que seria esse processo de integração ou o pleno exercício dos direitos civis, a textura aberta dessas normas possibilita interpretar a ideia de integração de forma assistemática e até mesmo contrária ao que a literatura especializada entende por tal termo. De modo geral, em que pese os antropólogos entenderem integração como uma relação interétnica em que não há a descaracterização identitária daquele que passa a compartilhar traços culturais que são atribuídos a outra etnia, o conceito foi – e tem sido – utilizado pelos poderes administrativo e judiciário no sentido de assimilação. É possível perceber isso no discurso desenvolvimentista dos militares dos anos 60, 70 e 80, bem como na fala de Bolsonaro e seus aliados e, também, no próprio Poder Judiciário, em decisões recentes que confundem integração com assimilação. Esse erro conceitual se verifica sempre que se utiliza integração com o sentido de uma relação interétnica que leva à substituição de traços culturais atribuídos a uma cultura por outra.
A classificação de povos indígenas em estágios de integração revela a posição etnocêntrica e evolucionista imposta a esses povos, mas também tem consequências imediatas e pode representar uma grande ameaça para que os índios tenham seus direitos constitucionais garantidos. Diretamente, tal classificação é usada frequentemente pelo Poder Judiciário para negar a competência da Justiça Federal de julgar questões relativas a direitos de indígenas e também impedir a aplicação do art. 56 do Estatuto do Índio, o qual garante uma atenuante na aplicação da pena e, em seu parágrafo único, confere a possibilidade de cumprimento de pena em regime especial de semiliberdade no posto da Funai mais próximo de onde habite o indígena. Quando requerem ao Poder Judiciário tais benefícios, os indígenas são classificados como integrados tendo em vista a manifestação de alguns traços culturais identificados como pertencentes à “comunhão nacional”. Sem se ponderar quanto ao grau de “integração” do indígena e muitas vezes sem recorrer a um laudo antropológico para aferir tal condição, sujeitos de direitos indígenas são classificados pelo Estado entre isolados e integrados, de modo maniqueísta e a partir de uma concepção estática do que seria uma culturaindígena.
A forma como os operadores do Estado brasileiro têm entendido o que é cultura tem grande importância na classificação jurídica que é feita dos povos indígenas. De modo geral, os profissionais do direito não têm os instrumentos para lidar com a diversidade cultural inerente à temática indígena. Em razão disso, transportam para a aplicação do direito preconceitos disfarçados de conteúdos sobre o que faz alguém ser considerado indígena. É bastante comum na jurisprudência brasileira justificar a classificação de um indígena como integrado a partir da ausência de traços culturais que são naturalizados como característicos aos povos indígenas e que se opõem a características culturais ditas da “sociedade nacional”. Para ser prático, para muitos profissionais do direito, ser indígena significa viver isolado, sem uso das tecnologias modernas, sem qualquer documentação civil e sem o domínio da língua portuguesa. Tal concepção do que seria identidade indígena revela que se pensa a cultura como algo estático, não suscetível de mudança sem a descaracterização da identidade cultural.
Apesar do alarde que os dispositivos normativos que comentamos possam causar, preocupa-nos mais a utilização indevida do conceito de “indígena integrado”, tanto no judiciário como no debate público. O uso de “integração” no sentido de “assimilação” com o objetivo de deslegitimar reivindicações de direitos dos povos indígenas pode ser poderoso, pois tem grande adesão a diversos setores do campo jurídico e político e efeitos jurídicos fundantes de qualquer direito ao indígena. Afinal, o direito entende que é preciso antes ser indígena para ter quaisquer outros direitos conferidos a essas etnias, sejam eles penais ou territoriais.
É claro que existem condicionantes legais próprios ao Estatuto do Índio que podem servir à contestação em juízo de medidas que cogitamos anteriormente como, por exemplo, disposição do Estatuto que põe a “remoção de grupo tribal” como última alternativa, a ser usada somente quando não for possível ou aconselhável a permanência dos indígenas em certa área ou o ressarcimento integral dos prejuízos decorrentes da remoção. Existem também os controles judiciais de constitucionalidade e legalidade, diversas instâncias e instituições necessárias para se pôr em prática medidas como a remoção de povos indígenas de suas terras ou a sua desconsideração enquanto indígenas no âmbito jurídico. Há também movimentos sociais, organizações não governamentais, organismos internacionais e defensores dos direitos humanos interessados na melhor aplicação da legislação indigenista brasileira tendo em vista os ditames da Constituição e dos tratados internacionais a que o Brasil se submete.
Contudo, a história recente do Brasil mostra que há casos (não poucos) em que nenhuma normatividade jurídica é suficiente para deter aquilo que é obviamente ilegal e imoral. Sabemos, não se tem segurança que qualquer texto legal seja capaz de frear a disputa hermenêutica que se aproxima. Ela irá ocorrer. O aparato jurídico necessário para que se pratique uma política danosa aos direitos humanos dos índios do Brasil já está, formalmente, em vigor. Basta surgir aqueles que permitirão a sua aplicação. Esperamos poder, enquanto isso, resistir.
* Texto publicado originalmente no Site www.justificando.com
Caio Ferrari de Castro Melo é mestrando em Teoria Geral e Filosofia do Direito na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), bacharel em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie e membro associado da Rede de Pesquisa Empírica em Direito.