Era o centro da cidade, mas não o miolo fervilhante. Eu já a tinha visto antes, nas imediações, e ela sempre me impressionara fisicamente: era uma mulher negra, alta e magra, de corpo forte e bem proporcionado.
A coluna reta e digna, sem ser empertigada. Os movimentos, seguros e graciosos. Que porte! O rosto belo, de feições simétricas, lábios bem desenhados e grandes olhos, atentos. A pele de veludo, levemente cintilante.
Em tão atraente figura, apenas um detalhe me desconcertava: era moradora de rua. Mas, tão aprumada, que dela eu não teria a coragem de dizer: “mendiga”.
Desci a ladeira observando-a, completamente absorvida em sua tarefa. Estava sentada num degrau debaixo de uma marquise e, com caderno e caneta à mão, escrevia.
“Em tão atraente figura, um detalhe me desconcertava: era moradora de rua”
Escrevia! Quando fui me aproximando, espichei os olhos para espiare, longe das garatujas que imaginei encontrar, surpreendi-me. A página estava quase toda preenchida por uma caligrafia das mais harmoniosas, e ela continuava a manejar, tranquila e ritmadamente, a caneta sobre a linha.
Se redigia livremente, pensei, antes refletia, elaborava ideias, paradepois registrá-las no papel. Atividade que demanda certa competência intelectual!
Logo,a mulher tinha instrução, e não era das mais elementares. Então intrigou-me de vez. De onde viera? O que a levara àquele lugar no mundo? E sobre o que escrevia?
Não me senti autorizada para interrompê-la em sua envolvente tarefa. Nem invadir seu peculiaríssimo universo. Mas, ah, que vontade senti de puxar conversa. E ainda me pergunto qual seria a história daquela nobre senhora.
Onides Bonaccorsi Queiroz é jornalista, escritora e autora do blog verbodeligacao.wordpress.com
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