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A HISTÓRIA DO MASSACRE DE ÍNDIOS NO ACRE (Parte 2)

O texto abaixo é parte de um conto que integra o livro “Dramas da Amazônia”, escrito pelo pastor evangélico Sérgio Aparecido Dias. Ele morou em Feijó, Acre, entre 1976 e 1979, ocasião em que conheceu e entrevistou Pedro Biló e outras pessoas que relataram as numerosas atrocidades cometidas por ele. Vale a leitura.

Pedro Biló:
O massacre do lago
Arapapá

“E a lua prateada testemunhou a extrema covardia do ser humano, embrutecido em sua loucura assassina.”

Uma certa vez, num tempo qualquer do passado, necessitaram de seus serviços. Um determinado seringalista precisava de uma área que pertencia aos Caxinauá, cuja aldeia ficava no centro da terra em questão. Não havia sido possível um acordo com o chefe, que não aceitou trocar as terras por outra área num outro local, embora mais vantajoso, do ponto de vista do homem branco, é claro. E Pedro Biló foi chamado para resolver o problema.
– Seu Pedro, os caboclos não trocam aquela terra por nenhuma outra! E nós sabemos que lá tem muitas seringueiras boas de corte, daquelas que dão borracha de primeira! E se eu não posso ter aquelas terras por bem, então que seja por mal mesmo!
– Se voismecê garantí as minhas costa, entonce pode contá comigo e com os meus rapaiz. A gente arresorve isso bem rapidinho.
– Nem fique ressabiado, óxente! Além de mim, ainda tem o coronel Zeca Rabêlo, meu amigo e protetor, que é a lei aqui do alto Envira! Pode fazer o trabalho, que eu garanto que ninguém vai meter o focinho por aqui, num sabe? E se meter, a gente corta na bala, pois não?!?
– Apôis, o senhor pode contá com o meu papo amarelo, meu patrão!
– Isso mesmo que eu esperava ouvir, seu Pedro! E eu fico devendo mais esse favor ao Zeca. Adespois a gente se acerta, no final do fabrico. Vai ser aquele festão, com muita mulher e cachaça! E essa indiarada dos infernos que vá conseguir terra lá com o capêta, ora pois!
E Pedro Biló ajuntou seus homens de confiança. Com a garrafa de cachaça passando de mão em mão, iniciou um pequeno discurso, tendo à mão o seu temido rifle papo amarelo. A visão de Pedro Biló, atarracado e forte, empunhando o seu temível papo amarelo, gelava o sangue de qualquer um. E olhando fixamente aqueles rudes pistoleiros, colocou-os a par da situação:
– O seu Nezinho contratou a gente prá mode arretirá aqueles caboclo lá da terra firme do Arapapá. É serviço garantido, mais eu preciso que todo mundo se agaranta na pontaria. Se a gente se arresguardá, entonce tudo vorta vivo. Mais se argum morrê, entonce que morrido fica, ocêis tão me entendendo?
– Tamo sim – responde um dos capangas – Mais num vai sê fácil tirá os caboclo de lá! O Arapapá é quase uma serra, cheio de furna, parece mais é morada de onça, aquilo lá! Sei não Biló, mais eu acho que é bão tomá cuidado! Aquela cabocrada pode armá cilada prá cima de nóis!
– Óxente Evaristo, mais que cagança é essa?!? Nóis aqui tudo é gente do gatilho, num tem medo de cabra nenhum, quanto menos de índio, que só tem arco e flecha?! E adespois, tu tá te esquecendo do meu São Cipriano? Vou fechar meu corpo com a oração da cabra preta e com a oração do sapo seco, que eu quero ver a indiarada me enxergar! Num carece de se preocupá, não! Só quero que cada um faça a sua parte, que a reza braba e as mandinga são por minha conta, tá combinado?
– Combinado e meio, Biló! Pode contá com nóis!
Evaristo tinha lá as suas razões, o Arapapá parecia um socavão de serra. Barrancos altíssimos, de rocha pura, erguiam-se ameaçadores ao longo de grande parte das terras firmes, pela margem esquerda do rio Envira. Mesmo adentrando os vários lagos, as várzeas altas se alternavam com as baixadas, misturando pedras duras como o aço, com a tabatinga argilosa. Um paraíso de riquíssimo ecossistema, abrigava vários espécimes vegetais como cedro, mogno, angelim, copiúba e outras, além do “ouro branco”, o látex das seringueiras. Seus lagos eram um autêntico viveiro de pacús, curimatãs, matrinchãs, piaus e tucunarés. Nas matas, bandos de queixadas conviviam com veados, caititús, pacas, capivaras, antas e onças. E as aves e pássaros, às centenas de milhares, enchendo a floresta de gorjeios e trinados, de colorações as mais diversas, desde o próprio arapapá, que deu nome ao local, aos magoarís, garças, papagaios, araras, mutuns, galos da serra, ciganas e maracanãs.
Depois de dois dias de cautelosa aproximação, Pedro Biló e seus homens se acercaram do Arapapá. Viajando com extremo cuidado, sempre rente às margens, adentravam em todos os igapós, escondendo-se entre as canaranas e o araçazal e dormindo nas ilhotas de terra úmida dos chavascais. Quando necessário, a canoa seguia com dois homens, ziguezagueando entre as moitas de espinhos e as tiriricas, enquanto o resto do grupo se esgueirava entre os paredões do barranco alto, procurando fazer o mínimo ruído possível, quase invisíveis aos olhos de uma possível sentinela.
Por volta das 3 horas da tarde do 3º dia, já observavam a aldeia e estudavam a disposição das malocas. Tudo muito simples: as famílias ficavam em cabanas dispostas em volta das malocas principais. Nestas, em número de dois, ficavam os guerreiros, o chefe e o pajé. Havia ainda duas cabanas onde armazenavam alimentos e guardavam as suas armas.
Teriam que tomar cuidado com os cães. Contaram mais ou menos uns oito, afora alguns filhotes. Esses cães, embora dóceis na aparência, eram acostumados a enfrentar queixadas e acuar onças nos grotões das furnas. Tinham um excelente faro, especialmente para detectar a presença de seres humanos.
Mas Pedro Biló havia tomado suas precauções. Desde o dia anterior, ele e seus homens besuntaram os seus corpos com uma mistura de malva, malvarisco, ayahuasca, pólvora e fumo. Além disso, procuraram colocar-se contra o vento, para dificultar o máximo possível a detecção pelo faro. Prepararam vários nacos de carne de sol, temperados com uma mistura de timbó com ayahuasca. A ayahuasca provoca delírios, visões, descoordenação motora e distúrbios mentais. O timbó é um cipó das muitas espécies de plantas tóxicas da floresta amazônica, que inibe os sentidos, entorpece o sistema nervoso e leva à morte por asfixia e paralisação do sistema respiratório.
Tudo agora era uma questão de tempo e paciência. Neutralizados os cães, tomadas as armas e dominadas as sentinelas, o resto seria um combate normal, com o rugido do papo amarelo e a agudeza das lâminas dos punhais.
Para saber mais: O livro “Dramas da Amazônia: contos de arrepiar” (2012, Editora Biblioteca 24horas, disponível para aquisição no site da Amazon.com), de Sérgio Aparecido Dias, é uma coletânea de contos sobre temas amazônicos resultante dos relatos e acontecidos colhidos pelo autor durante os 30 anos de serviços de evangelização que realizou pelos rios da região. Alguns nomes de lugares e pessoas citados no texto foram alterados para proteger pessoas e o autor.

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