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Os traumas de quem viveu o Regime Militar de perto: relatos da memória

“Caminhando e cantando e seguindo a canção, somos todos iguais, braços dados ou não”, a música de Geraldo Vandré (1698) expressa bem o período militar no Brasil. Ela virou símbolo de resistência e de luta por democracia e liberdade de expressão.

O dia 31 de março é um dia histórico para o Brasil, marca o início de um tempo sombrio que perdurou por 21 anos (1964-1985). Os relatos que seguem abaixo são de uma criança que viveu a Ditadura Militar e condicionou sua adolescência e juventude à luta por democracia.

João Maurício Rosa, paulista de Pilar do Sul, jornalista, mora no Acre há um bom tempo, conta detalhes a respeito do período militar em sua infância e as marcas que isso deixou em sua vida. “Eu estava no primeiro ano do primário quando aconteceu o golpe (na época chamada de Revolução de 64) em Pilar do Sul (SP), uma cidade ultraconservadora. Nós éramos obrigados a decorar todos os hinos e a assobiar a música do filme “A Ponte do Rio Kuwai” nas solenidades cívicas. Em 1969, o Exército fez buscas pelos guerrilheiros, comandados por Carlos Lamarca, que estavam na floresta, mas há 100 km de distância”.

Rosa viveu aquilo que costumamos ler nos livros de História ou acompanhar pelo cinema como o filme “O que é isso companheiro”, que conta a história verídica do sequestro do embaixador americano no Brasil por grupos de esquerda. Em troca, a liberação de diversos presos políticos. Havia uma espécie de ‘pressão psicológica’ na sociedade da época.

“A polícia afixava nos postes as fotografias dos “terroristas”, como eram chamados os membros das facções de esquerda que assaltavam bancos para financiar a luta e a libertação dos presos políticos. A gente morria de medo de encontrar um deles na rua, entre os quais os ex-ministros petistas José Dirceu e Luis Gushiken”, lembra.

Já moço, João Maurício conta que foi em uma manifestação na Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC Campinas) que conheceu uma das armas do Regime Militar, o gás lacrimogênio. “Em 1978 e 1979, fazendo faculdade de Jornalismo na PUC de Campinas experimentei o gosto do gás lacrimogênio em duas passeatas exigindo anistia aos exilados políticos e a abertura política”.

Demonstrando emoção ao falar sobre o assunto, o jornalista conta um detalhe de sua história que o marcaria para sempre: o cárcere. O motivo? Ir a um teatro. Naqueles tempos sombrios andar com a Carteira de Identidade (RG) não significava muito. A repressão entendida que todos tinham o documento, trabalhadores ou não. Era exigida nas revistas a Carteira de Trabalho.

“Uma noite, eu e um amigo saíamos de um teatro alternativo no Centro e fomos abordados pela Polícia Civil. Meu irmão mais velho tinha me ensinado a sempre andar com a Carteira de Trabalho, pois a polícia não interessava o RG, tinha que ter trabalho. Eu estava com a carteira de estudante, assim como o amigo, mas não adiantou, fomos os dois presos e passamos uma noite no xadrês por frequentar um teatro subversivo e a gente nem sabia disso. As polícias, na época, tinham superpoderes, detinham e mantinham você preso o quanto tempo quisessem. Fomos soltos com o dia clareando por um policial mais sensato”, relata ele.

Ao final, João Maurício Rosa, faz um comentário reflexivo para os dias atuais, de fragilidade política, de incertezas. “Se as pessoas não imaginam o que é levar uma abordagem policial durante o regime democrático, calcule num regime de exceção! ‘Carteira de identidade qualquer vagabundo tem, quero ver a sua carteira de trabalho assinada’. Esta era a abordagem. Imagine hoje com esta crise de emprego”, ressalta ele ao reabrir a caixa da memória.

João Maurício Rosa,

A Ditatura Militar no Acre e seus efeitos

O historiador Marcus Vinicius Neves diz que o período Militar no Acre foi devastador para a vida política. Ele explica que assim que o Acre foi anexado ao Brasil, este passou a ser território federal e seus governadores eram escolhidos pelo presidente da República. Da mesma forma acontecia com os prefeitos dos municípios “ora nomeados pelos governadores, ora nomeados pelo governo federal, também”.

“A ditatura militar para o Acre teve uma consequência mais nefasta que mesmo para outros estados brasileiros onde a repressão pode ter sido mais evidente, como no Rio de Janeiro, por exemplo, em que a repressão foi muito intensa e deixou marcas profundas, muitos casos de mortes, prisões… No caso do Acre, não teve uma violência tão aguda por todas as ruas da cidade, mas teve uma consequência nefasta, específica para o Estado do Acre. Desde a anexação ao Brasil em 1904, com  Tratado de Petrópolis e o Tratado do Rio de Janeiro foi transformado em um Território Federal. Então, ele não tinha democracia, pura e simplesmente. Os governadores eram nomeados pelo presidente da República, os prefeitos eram ora nomeados pelos governadores, ora nomeados pelo governo federal, também. Da mesma maneira não elegia representantes legislativos”, conta Vinicius.

Em 1962, o Acre foi elevado à categoria de Estado e realizou em dezembro daquele ano sua primeira eleição para governador, tendo o professor José Augusto de Araújo (PTB) como vitorioso. Em março de 1963, ele assume o Palácio Rio Branco, mas um ano depois, ele é obrigado a assinar uma carta renúncia ao cargo de governador pelas tropas do capitão Edgar Cerqueira Pedreira de Menezes.

“Ainda em 1964, um ano e pouco de ter começado seu governo, José Augusto de Araújo foi ‘renunciado’, como eu sempre digo, e um capitão do Exército passou a exercer o poder político no Acre numa volta aos tempos do Território Federal em que os governantes não eram eleitos pela população, ou seja, a Ditadura Militar matou a recém-nascida democracia acreana de forma muito abrupta”, destaca o historiador.

De José Augusto de Araújo à Marina Silva

O Regime Militar não só retirou direitos conquistados nas urnas como no caso do governador do Acre, José Augusto de Araújo, mas também monitorou de perto os passos de pessoas consideradas subversivas ao Regime. É o caso da ex-ministra Marina Silva, à época (1983) acadêmica do Curso de História da Universidade Federal do Acre (Ufac) e candidata ao cargo de presidente do Diretório Central dos Estudantes (DCE).

Entre as anotações do Serviço Nacional de Informação (SNI) estão relatos de discursos proferidos por Marina e outros acadêmicos contra o Regime instalado após o golpe de 1964.

Os militares também acompanharam os passos de Marcos Afonso Pontes de Souza, presidente eleito para DCE na eleição que Marina disputara (1983), e de Pascoal Muniz, presidente da Associação dos Professores do Acre. O objetivo era neutralizar qualquer força contrária à Ditadura.

 

 

 

 

 

 

 

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