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Das voltas que o sol não dá

Há forças da natureza que ditam rumos e mudam destinos. É possível dar uma topada e cair com as fuças bem debaixo das saias de uma bela rapariga, e por ela se apaixonar. É como se o jabuti colocado de pernas para o ar, de repente, desse uma cambalhota e começasse a correr. As pouco prováveis mutações químicas não explicariam, e a física quântica talvez nem passasse por perto. Coisa de doido.

Pois bem.

Num dos dias mais luminosos de um abril qualquer do século anterior, nasceu uma criança, na rua das castanholas de uma cidadezinha perdida por aí.

De saída do ventre da mãe, pela via convencional, depois de três dias de sofrimento, ele enfim escorregou pra fora, deu três cangapés e caiu nas mãos do médico já sem o umbigo. Acrobático é pouco. Brilhante talvez seja a medida suficiente. Era como se já estivesse no picadeiro de um circo, ou no palco de um rendez-vous. Inclinou-se para a frente e fez um gesto com as mãos em agradecimento à presença do distinto público formado pelo parteiro, a avó, a mãe e uma ajudante de ordens. Era tardinha e a lua já sorria faceira em vista do presente que Deus havia dado àquela cidade.

O menino, meio rechonchudinho, tinha a pele morena e arroxeada de recém-nascido, mas, logo em seguida, veio a revelar uma tez da cor jambo aclareado. A boca era perfeita como uma uva aberta ao meio. O nariz, afilado, muito se assemelhava ao do Ken, namorado da Barbie. Tinha olhos amendoados castanhos clarinhos semelhantes ao mel de abelha. Os cabelos encaracolados quase lembravam os do Menino Jesus de Praga. No pescoço trazia um sinal no formato de uma estrela de cinco pontas. Fora nascido para brilhar. Um colosso.

No dia seguinte, o belo rebento já se viu envolvido na primeira querela das muitas que teria pela vida afora. A avó, a mãe e o pai queriam que tivesse o nome de Yussef, em homenagem ao parteiro do mesmo nome. Mas o médico tinha uma sugestão. No aeroporto de Budapeste, um pequeno avião, ao taxiar, houvera decepado o pescoço de um sobrinho chamado Klaus, estudante finalista de medicina. (Naquele tempo não havia salas de embarque ou desembarque e os viajantes ficavam à deriva entre os aviões nos pátios de manobras.) Como o médico era da religião espírita, então, sugeriu que colocassem no infante o nome Klaus. Tudo o levava a acreditar que as qualidades do falecido teriam sido introjetadas no garotinho ao nascer. Enfim, para a felicidade geral da nação, findaram por agradar a gregos e turcos. O menino chamar-se-ia Yussef Klaus, como ainda hoje o é. Uma beleza.

Beleza esta perfeitamente justificada. Ele saíra por completo à mãe, uma mocinha morena, olhos da cor de garrafa, elegância e educação à toda prova, cabelos grandes encaracolados, sorriso de musa e alma de santa.

Ao terceiro dia, no findar das setenta e duas horas de resguardo do menino, imensas filas foram se formando a partir da madrugada. Manhãzinha de céu claro e já as alas dobravam quarteirões. Todos queriam ver a beleza resplandecente do guri mais bonito que aquela terra benfazeja já viu. Ora pois-pois.

Aa visitas ocorriam entre nove e onze da manhã e três e cinco da tarde. Os presentes, além do ouro, incenso e mirra, iam de uma sunga de crochê a um babador bordado com fios de ouro senegalês.

Ao fim e ao cabo de três meses, então, a beleza da criança já era divulgada pelas cidades e países vizinhos. Dia sim e outro também, aparecia um turista querendo ver o carinha bacaninha.

Mas faltava uma moça conhecer o Yussef Klaus. Ela ainda não tomara coragem, tendo em vista ser uma das amantes do pai do menino dado (aquele) a concubinas de qualquer bitola, religião ou raça. A amante do vento, como assim era conhecida na cidadezinha, era chamada Magnoly, ou Wildcat para os íntimos.

Numa quinta-feira pela manhã, Wildcat entrou meio que invadindo a casa. A mãe dera um banho com sabonetes patchouli, passara água de colônia e talco, e o menino estava nu sobre a cama, com as pernas e os braços balançando, como é comum a toda criança de três meses. A moça de vida difícil chegou aos gritos:

– Sophie!… Cadê o Yussef Klaus? Eu quero vê-lo.

Ela não passou da porta do quarto, mas avistou o menino e os ouvidos deste haviam captado as ondas sonoras negativas dos gritos da concubina.

Ela se foi, mas em vinte segundos o menino já revirava os olhos e entortava o corpo em esgares extremamente estranhos. Havia pegado o tal quebranto. Era muita boniteza para tanto mal olhado. Danou-se.

A fofura e a beleza desapareceram. As pernas viraram cambitos. Os olhos e a moleira afundaram, o sorriso sumiu, o pescoço afinou e a barriga cresceu. E as coisas iam ficando mais graves a cada dia. Já ninguém dava um vintém pela vida do infante. No desespero, a mãe gritava da porta da casa:

– Quebranto de puta quando não mata engorda! O que é que eu faço, meu Deus!?

O médico parteiro vinha todos os dias e receitava a ingestão de líquidos dentre os quais os unguentos e chás caseiros, como o da carmelitana. O magnopyrol não funcionava e ele pedia a ajuda do espírito do outro Klaus, aquele decapitado no aeroporto de Budapeste.

– Calma, mãe! Calma, pai! Tudo ao seu tempo. Ele ficará bom mais dia menos dia.

Os benzedores e rezadeiras foram todos visitados. E era de manhã e à tardinha, mas a merda continuava verde e o ex menino bonito, em estado deplorável.

Passados quase dois anos de sofrimento intenso, na manhã do segundo aniversário, então, ele acordou sorridente e prazenteiro, da mesma forma como estava no dia em que pegou o mal olhado transmitido pela puta. Um anjo o havia visitado durante o sono e trouxera-lhe a cura definitiva, para a felicidade dos já cansados pais e avós. O médico parteiro, mesmo depois de velhinho, nunca deixou de afirmar que o menino havia recebido a visita de Klaus, o quase médico que perdeu o pescoço na Hungria.

Ele não se matriculou no balé, e muito menos nas aulas de canto orfeônico, ou gregoriano, nem treinou ginástica no elástico, ou no cavalo, mas aprendeu a dançar samba de gafieira antes dos quatro de idade. Aos cinco já sabia ler de carreirinha e passou a namorar a Katie, loirinha, de olhos agatiados e da mesma idade, lógico.

Eis que uma irmã das mais velhas tinha talento para ensinar crianças e queria completar a renda da família. Por isso, montou uma sala para aulas de reforço. Ali por perto o menino, sentadinho, ia ficando. Observava tudo nas minúcias. Era do signo da coruja. Em um mês já estava alfabetizado.

Meados do século vinte. Os dias se passaram celeremente pelo menos aos olhos vivazes do Yussef Klaus. Depois, no dia das eleições, ele se perdeu no meio do povaréu, o que causou grande alvoroço. Sem problema. Logo-logo o menino foi encontrado, no templo, dando aula para os sábios de Jerusalém, ou apenas para Palmieri, o padre, um homem gordo, glutão e bronco.

É assim a vida de quem sonha sonhos miraculosos sob a luz do sol de verão a pino.

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CLÁUDIO MOTTA-PORFIRO

*Escritor. Membro da Academia Acreana de Letras, Cadeira 27. Autor de O INVERNO DOS ANJOS DO SOL POENTE, romance, à venda pelo https://www.facebook.com/claudio.porfiro >

 

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