Ícone do site Jornal A Gazeta do Acre

Em tráfego denso através das galáxias

A vida se completa todos os dias e as experiências ditam o rumo da prosa épica, lírica e dramática que é o destino. Depois de vestir a pele do pintor espanhol das nove esposas, por longos anos, já estava mais do que na hora de viver uma nova aventura terrestre. A humanidade, aos gritos, há muito clamava por um benfeitor emérito que viesse para continuar obras dantes inacabadas.
Numa daquelas noites quentes de verão, a nuvem que transportava o anjo pairava sobre um rochedo à beira mar. O adorno natural se completava com uma enseada em forma de ferradura e uma praia estreita de areias brancas de tirar o fôlego. A luz da lua fazia da visão algo digno dos melhores quadros de Raffaellino del Garbo, o pintor renascentista florentino. As regiões tropicais, como os olhos verdes das nossas morenas mais espetaculares, são mesmo muito bonitas. Em síntese, tudo era de uma beleza sem par.
Amanhecido o dia seguinte, ainda no mesmo continente, a nuvem agora deixava o anjo ver uma cordilheira imensa coberta por um gelo azul prateado ao sol da manhã. Depois do meio-dia, então, uma breve viagem e já estavam sobre imensa floresta salpicada pelas flores das árvores do pau d’arco roxo e do amarelo, dentre milhões de outras. A pouca fluidez do vento deixou-os ficar pra lá e pra cá durante dias, talvez meses. E foi aí que, em vista do marasmo tropical, segundo ordens do espírito absoluto, ele houve por bem descer para, mais uma vez, habitar a terra enquanto humano tropeçante, ridículo, limitado, com o coração cheinho de amor pra dar ou vender a bom preço, e uma libido pecaminosa que fluía aos borbotões pelas mil frestas da alma pachola.
Motivos já sabidos levaram o menino à quase morte vitimado por uma doença que o deixou em pele e osso durante dois anos. Mas sobreviveu. Deus sabia o que estava fazendo, claro.
Em meio ao denso verde escuro da floresta, eis que o anjo viu uma clareira. Era uma cidade amazônica nascente. Ali desceu e se encarnou no seio de uma virgem de trinta e três anos, a idade que tinha o anjo maior quando fez a grande obra em benefício dos humanos. A cidade carregava o pomposo nome de Farol de Almas Brandas.
O menino aprendeu a ler aos cinco de idade. Até a chegada à escola, aos sete, pois, ele viveu um estágio avançado de aperfeiçoamento dos melhores na leitura e na escrita. A irmã era professora e a mãe sabia onde os macacos cochilavam no pingo do meio-dia.
Um dia, então, na casa da rua das castanholeiras, apareceu um garotinho da mesma idade do menino perscrutador, vindo de uma rua adjacente e bem distante para o infante que viera sozinho. Era visita de criança, mas era visita.
O visitante bacaninha soube, por A mais B, que um menino de seis anos lia de carreirinha e sabia contar até mil. Era um colosso. Ele jamais houvera visto tal façanha e, de posse de um livro que trazia às mãos, pediu que o outro lesse a fábula do Gato de Botas e o seu amestrador, o Marquês de Calabar.
Pronto. O menino danou-se a ler, às carreiras, e o outro ficou de olhos esbugalhados de tão espantado com a celeridade do primeiro. Nunca tinha visto aquilo. Nem precisou falar em números. Ele se foi. Só vieram a se encontrar bem depois, já nos tempos de colégio.
Corria um ano qualquer de meados do século anterior a este. Agora mesmo, oficialmente, enfim, o menino e anjo estava matriculado numa escola do governo bem pertinho de casa. Naquela época não chamavam uniforme. Era farda, tendo em vista ser aquele um tempo em que o general da banda mandava matar índios, sem nenhuma cerimônia. Por isso, ele ia fardado para a aula, acompanhado da mãe que deixaria muitas recomendações para a primeira professora, uma morena belíssima, do grupo escolar.
Na fila, antes da entrada, ele já cantou o hino nacional completinho. Trazia-o na cachola, de cor. E, pela primeira vez, adentrou a sala de aula, onde umas quarenta crianças faziam uma grande balbúrdia em luta corpórea para conseguirem sentar-se nas carteiras da frente. Ele ficou na maior tranquilidade. É que, em casa, alguém dissera que a professora era do tipo que arrancava as tripas de qualquer moleque pela boca. E era, sim.
Eis que a professora e diva chegou, deu uma reguada na mesa e todo mundo ficou quietinho, em silêncio de moscas. Em seguida, ela bradou:
– Ei, você! Puxe essa carteira pra cá. Fique aqui bem pertinho de mim.
O menino e anjo olhou pra trás e para os lados, percebeu que ela falava com ele e não titubeou. Foi sentar-se colado na mesa da professora que já fazia a chamada para uma plateia de meninos e meninas atônitos, boquiabertos.
– Agora, todos devem abrir o livro na primeira página, onde está escrito A fazenda Mococa. Esse mocinho aqui – disse apontando para o menino – vai tomar a lição de lá pra cá e ou vou tomando a lição de cá pra lá. Quero ver quem é que já sabe ler alguma coisa.
Era um pouco mais de uma hora da tarde e aquilo foi como uma lufada de vento na cara do menino. Haviam dito à professora que o garoto lia até em castelhano. Daí em diante, passou a exercer o desiderato que lhe acompanhou pela vida afora. Estava escrito nas estrelas: ele misturaria os métodos usados para dar aulas aos truques utilizados nos espetáculos. Ficaria entre a técnica apurada e a picardia inteligente. Show de bola.
Metade das crianças não sabia ler coisa alguma. O Anastácio, então, meteu a cabeça na carteira se auto flagelando por sequer conhecer o A. A menina Catarina quase arranca os cabelos crespos em alto nível, pelo mesmo motivo. Uma boa parte dos alunos balbuciava alguma coisa e umas três ou quatro crianças liam direitinho.
O menino e anjo esbelto demais e metido a sabido acompanhou a lenga-lenga da professora no exercício dos seu ofício durante um ano inteirinho. Era 1964.
Logo ali pelos primeiros dias, de novo, o sinal do recreio tocou. (Esta era a palavra, pois o termo intervalonão era usual entre os escolares.) O menino tomou o leite quente doado pelos americanos. Uma gororoba. Esgueirando-se rente à parede, viu muitas crianças que corriam em meio ao campinho dos fundos do grupo escolar. Também ele resolveu correr e logo vinha um garoto atarracado com cara de valente correndo atrás dele. Não percorreu três metros, tropeçou e caiu. Os sacanas mais velhos haviam amarrado uma touceira de capim à outra. Ele, bobo, meteu as fuças no chão e, o que foi pior: o baixinho com cara de doido vinha fugindo de alguns outros e não estava perseguindo o nosso herói atônito em miniatura.
Era uma terça-feira e a segunda metade da aula foi atordoante. A blusa branquinha de tricolina, com duas pregas largas na frente, na vertical, ficara manchada do verde do capim por ocasião da queda. Uma merda. A mãe recomendara que aquela blusa deveria ser usada durante toda a semana letiva. Pior é que ela era uma cearense ranzinza até as tripas; tutano quente pegando fogo. Mas a situação foi contornada e tudo deu em nada.
O final do ano veio e, contando de zero a cem, o menino ficou com a média geral fixada em noventa e sete, a melhor nota da turma. No último dia de aula, foi pra casa com os braços carregados de presentes. Ele havia recebido das professoras e da diretora meias, sabonetes, lápis, cadernos e um corte de tecido. Coisa daquela gente feliz e humilde do nosso velho e bom Farol de Almas Brandas.
Que Deus lhes abençoe.

Sair da versão mobile