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Poética da liberdade: relatos de um fugitivo

Para um homem sozinho, o sonho da liberdade pode ser a luta correspondente ao transcurso de toda uma vida. Para um povo-nação, diferentemente, tal demanda pode equivaler a séculos de tentativas, insucessos, interlúdios de conquistas, golpes e contragolpes.

Os relatos de Andrés Alarcon são de tirar o fôlego…

Fiquei ali, plantado, por longas treze horas, esperando que alguém desse pela minha presença, sentado nas raízes de uma árvore frondosa. Bebi água do cantil amassado e comi pão bolorento do alforje mais velho que eu. Enfim, alguém me fez acompanhar em direção a um carro parado no meio da rua. Segundo essa anja loura e linda, a embaixada do país vizinho estaria disposta a me conceder asilo diplomático, em vista do meu elevado grau de estudos e devido aos muitos projetos sociais por mim levados a efeito entre os índios yanacona.

Moreno, média estatura, calvo, cabelos encarapinhados e um pouquinho fraco de feições, estivera por meses escondido na floresta amazônica, extremo sul colombiano. Fugira de Cartagena, tomando o rumo sul, e chegara à região de Valpés. Fazendo a travessia do rio do mesmo nome, alcancei a pequena cidade de Mitu e, por um triz, não consegui atingir o grande objetivo que era chegar à terra das oportunidades através do Estado do Amazonas.

Não logrei êxito e fui apanhado pelo exército. As vestes de um feiticeiro indígena em busca de ayahuasca além dos limites permitidos não foram de modo algum convincentes.

Cinco meses depois, em Bogotá, fui liberado para ir em busca de um passaporte com o qual poderia chegar à Venezuela através do Equador. Quase fui socado – jogado na marra – dentro de um velho fusca por uma moça brasileira. Em Manaus, duas semanas mais tarde, enfim, consegui uma bolsa de estudos para, na Unicamp, fazer cursos de pós-graduação em humanidades.

A disciplina estudo de problemas brasileiros, em junho de 91, levou-me à apresentação de um trabalho detalhado sobre aspectos variados das culturas latino-americanas. Por quase três horas, fui sabatinado por uma multidão de pós-graduandos ávidos por conhecimentos sobre as políticas macro, além das fronteiras do Brasil.

As perguntas findaram por tomar o curso previsto. Chamando para mim a metodologia do evento, fui enfático ao proclamar que, há seis mil anos, a humanidade vive uma guerra ininterrupta declarada pelos ricos contra os pobres, com direito a assassinatos, provas e testemunhos forjados, prisões injustas, assinaturas falsificadas, manipulação de informações, fraudes cartoriais, dentre outras muitas atrocidades. Os interesses dos poderosos não podem ser contrariados, nem que para isso eles tenham que matar milhões de humildes.

Para ilustrar tal assertiva, então, restringi-me apenas a alguns acontecimentos brasileiros.

Fatores dentro de um contexto levam os mais detalhistas a ver que a Cabanagem, no Grão-Pará, por exemplo, a partir de 1835, foi uma revolta onde os ricos queriam continuar massacrando, ou escravizando com o não pagamento de salários aos mais pobres cabanos – beraderos – que viviam miseravelmente nas margens dos rios. Interessava apenas o trabalho do caboclo em troca de uma alimentação rala fornecida pelos patrões.
Mas havia o açaí que dava substância para a luta no corpo a corpo. Durante cinco anos sangrentos, os revoltosos, pobres, conseguiram vencer os ricos em lutas armadas, a golpes de facão, no meio das ruas de Belém, fato que não era noticiado, posto que os poderosos, como sempre, detestam dizer quando perdem uma disputa contra gente faminta.

Os ricos vinham sendo ceifados e pediram ajuda, então, ao poder central. O todo poderoso império se armou com baionetas, arcabuzes e canhões, para uma luta contra os cabanos que não conheciam esse tipo de armamento. Os endinheirados findaram vitoriosos e o sistema escravagista se tornou ainda mais desumano.

Entre 1912 e 1916, os ricaços do sul do Brasil, em conluio com uma empresa americana, queriam construir uma estrada de ferro para transportar toda a madeira da região do Contestado, localizada entre Santa Catarina e Paraná, para São Paulo e, daí, para os mercados internacionais. Uma ideia subjacente era a europeização daquela parte do Brasil através dos imigrantes que povoariam, enriqueceriam e branqueariam a região.
Só que a terra era já povoada pelos caboclos, pessoas muito pobres, descendentes de índios, que não queriam desocupar o espaço que lhes pertencia desde tempos imemoriais. Escrituras foram forjadas, assinaturas, falsificadas e a opinião pública nacional de nada sabia porque os jornais da época, mancomunados com os poderosos, se encarregaram de esconder os fatos ou minimizá-los ao máximo.

Sob a liderança do monge José Maria, os camponeses, armados de enxadas e facões, ousaram desafiar a república branca. Bem mais de vinte mil pobres foram chacinados. A maioria destes foi jogada em valões sem sequer serem enterrados ou devidamente contados para os registros de guerra. Adeodato, o último líder, teve o corpo pendurado numa árvore e lá ficou até ser completamente devorado pelos urubus.

Canudos era um povoado paupérrimo com cerca de cinco mil habitantes em estado de miséria. Liderados por um beato de nome Antônio Conselheiro, esses nordestinos famélicos também ousaram desafiar o poder da República dos ricos armados até os dentes com paus e pedras. Eles não ambicionavam muita coisa. Exigiam apenas ser tratados como brasileiros legítimos com direito às benesses proclamadas pelo poder. Queriam água e condições para o trabalho na lavoura. Mas o presidente Prudente de Moraes, fazendeiro paulista de Itu, achava que eles não eram merecedores de vida digna.

Por dois longos anos, os sertanejos famintos venceram as escaramuças contra o exército nacional. Mas os ricos não podiam ter o seu poder desafiado e, como sempre, colocaram o dinheiro a serviço dos interesses próprios e armaram as tropas federais.

Como relata Euclides da Cunha, no livro Os sertões, não sobrou viva alma. Foi ele quem cunhou uma frase célebre segundo a qual o sertanejo é antes de tudo um forte.

Lampião, para os abastados do nordeste brasileiro, era um bandido, pois queria os bens materiais repartidos entre pobres e ricos. Para os pobres, ao contrário, na década de 1930, era ele a salvação contra a fome e a miséria que assolavam – e ainda reinam – a região. Prevaleceu o que queriam os poderosos. Veio o exército e, depois de seguidas derrotas, conseguiu aniquilar o Robin Hood dos pobres e o seu bando.

Nos anos 1940, a seca campeava pelo Nordeste afora. Milhares de sertanejos miseráveis acorriam em direção a Fortaleza, capital do Ceará. Mas os ricos da cidade pujante e bela não queriam se misturar com aquela gente suja e pobre, e houveram por bem inventar um posto para a higienização dos retirantes na cidade de Senador Pompeu. Esse local, protegido por cerca elétrica, virou campo de concentração e lá estão enterrados mais de cinco mil corpos que nunca chegaram a ver o mar.

A história é um círculo vicioso cujo andamento só pode ser interrompido pelas grandes revoluções. É assim que ainda hoje diz o nosso tão festejado professor Andrés Alarcon.

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CLÁUDIO MOTTA-PORFIRO*

*Escritor. Membro da Academia Acreana de Letras, Cadeira 27. Autor do romance O INVERNO DOS ANJOS DO SOL POENTE, disponível no https://www.facebook.com/claudio.porfiro.

 

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