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Andaimes de gente em curvas sinuosas

As épocas antecedentes foram de alegrias intensas. Redemoinhos de felicidade e contentamento. A maré alta fazia regurgitarem as finanças. Fluía a riqueza naquelas paragens abençoadas. O ruído do ouro a encher os bornais era música aos ouvidos dos abastados. Festas muito dispendiosas davam brilho maior aos convivas e aos anfitriões, que em nada economizavam quando a ordem geral era arregalar a butuca de quem quer que fosse. Tudo era motivo de folguedo. Viria, enfim, o primogênito, no início do outono, para herdar fortuna incalculável.

São arriscados demais os andaimes de gente em curvas sinuosas. Certo é que o principezinho nasceu de pais ricos, sim, mas, ainda em criança, viu um império ruir e, de tudo, a realidade seguinte não conseguiu mostrar haver ficado pedra sobre pedra. Os desmoronamentos ocorreram em efeito cascata. A ruína não foi parcial, mas total.

A crise se abateu sobre todos. Os rios de dinheiro houveram por bem secar pela força da natureza e do humano. No ano seguinte, o responsável pela ascensão e queda do império sucumbiu ante o peso das dívidas sempre acrescidas de juros exorbitantes. A viúva, sem saber o que fazer, por pura desinformação, permitiu aos credores levarem tudo a preço de banana. Sobraram uns ralos caraminguás, um carrinho de pipoca, ela e um filho de apenas cinco anos. E mais nada.

Passaram a juntos vender guloseimas na porta de um mercado frequentado por gente também muito pobre. Depois do aprendizado das primeiras letras e nenhuma das operações de conta, ao menino não foi dado o direito de frequentar a escola média, em vista das ocupações do agora filho de nada.

Completadas as dezoito voltas, o principezinho pobre e de pouquíssima instrução, mas dono de si, foi servir o tal tiro de guerra. Como se dizia na época, sentou praça, e a mãe fixou residência junto com uma irmã, também viúva, em cidade próxima, onde passou a receber o benefício do fundo rural. Dela ele nunca mais teve notícia. Era apenas uma velhinha raquítica. Um estorvo a mais a ser suportado pela vida afora, além da própria miséria a lhe corroer o juízo.

Não há emprego decente para os que não têm instrução. Para estes, a vida é megera. Desde ontem e ainda hoje.

Passou a viver então de pequenos golpes, que logo cresceram. Mordidas bem leves, que mais tarde ficaram profundas. Armações chinfrins, que se foram reciclando. Murros em pontas de faca. Jogos de azar. Cafetão por ofício aos vinte e poucos anos. Resultados pífios. Talvez a fortuna não mais lhe voltasse a sorrir. Mas não seria bom se desesperar. Haveria, certamente, uma tênue e bruxuleante luz de lamparina no fim do túnel das ilusões fracassadas. Talvez alguma diva de certa idade aceitasse casar-se e repartir com ele alguma alegria, afinal, segundo lhe haviam dito antes, tal fator era muito comum na cidade grande.

Apareceu-lhe, enfim, uma proposta indecorosa, mas digna de alguma análise.

O nosso quixote sem moinhos tinha a impressão de estar pulando de um trampolim no escuro, sem conseguir ver a água lá embaixo, mas findou contraindo matrimônio, por altas conveniências financeiras, uma vez que estava em jogo uma sociedade libidinosa cuja liquidez consistia em corpos vivos pulsantes em camas ardentes seja em que posição fosse.

O cavaleiro andante casou com uma ninfeta de muitos predicativos físicos, inteligência de hiena e nenhum caráter. O projeto dos dois era a reconstrução do antigo império destruído por dívidas de quem não sabe gastar dinheiro.

Ela estudou apenas os rudimentos da leitura e da escrita. Em outras palavras, como ele, mal sabia ler e escrever, mas era um ás na arte da trampolinagem e do jogo sujo. Largou a família e veio fazer a vida na cidade grande, ainda aos doze anos, como bibelô de moças ricas dadas ao lesbianismo. Em seguida, os programas ficaram mais ecléticos. Homens ricos passaram a cortejá-la. Ingeria apenas bebidas destiladas de forma a manter a firmeza do corpo agora com vinte e três anos. Possuía o mesmo brilho nos olhos tal qual Luz Del Fuego, o que as pessoas chamavam de sex-appealje ne sais quoi, ou simplesmente borogodó, ou papá. Ia na vantagem com um sorriso travesso, andar rebolado, um perfil libidinoso, um ar de curiosidade sapeca. O cavaleiro, então, ficou tão consumido e desesperado de desejo quanto quando tinha treze anos e vira pela primeira vez uma mulher sem roupas.

Passaram a alugar uma casa de alguns quartos na rua das pitombeiras, em bairro central, onde algumas moças incultas e belas, provenientes da periferia, diziam apenas querer provar os licores famosos ali servidos. A sala era grande e um gramofone emprestava sutileza ao ambiente. As chaves eram ali apanhadas e metade da remuneração ficava em poder do casal de empreendedores do ramo do orgasmo.

E a empresa ia de vento em popa. Algum dinheiro foi amealhado, mas a origem era meio sujinha. Pior foi que, em seguida, a ambição falou mais alto e eles passaram a fomentar, ainda, a venda de marijuana a altos preços, fora a muamba do uísque paraguaio e dos ray ban que corria solta.

Os desejos humanos são ilimitados. São como a sede de um homem que bebe água salgada, não se satisfaz e a sua sede apenas aumenta.

Um dia, uma troca de tiros. Sobrou uma bala para o pescoço da Violetinha, a musa inspiradora e força motriz intelectual do negócio. Ela ultrapassou os limites da vida em questão de segundos. Caiu morta. Alguns disseram dela não ter competência suficiente para uma boa conversa com Deus. Não houve choro, nem reza e nem vela, uma vez que o quixote, agora tornado viúvo, teve que evadir-se do raio de ação da lei e dos demais sicários.

Vidas quase sem sentido, que se enroscam e se destroem, meses depois, ao ser indagado por um jornalista curioso acerca dos acontecimentos anteriores, sobre um episódio engraçado ou uma frase marcante dita pela desaparecida, ele lembrou apenas uma que sintetizava a passagem da ninfeta pela terra e segundo a qual quem não bebe não vê o mundo girar. Só.

Depois, a lei o obrigou a empreender fuga definitiva para o Paraguai, de onde nunca mais voltou.

Hoje, entre uma oração e outra, a pena do poeta comete alguns gemidos relativos ao par de almas deterioradas.

O mundo dos desejos depende da qualidade dos esforços que cada um empreende por esta vida afora; isto, é claro, sem esquecer as oportunidades que não são dadas a todos, notadamente, àqueles a quem o mundo não deixou herança em termos culturais. Por isto, as relações sociais estão tão degradadas. A família desajustada, desagregada, em tempos de usura, não permite que algo mais substancioso seja passado aos filhos em termos de prosperidade pela via da decência e da retidão de caráter.

Depois de tanta leitura, a alma utópica do livre pensador, hoje, percebe que aos ricos não importa a escola que eduque realmente os mais pobres. Convém, sim, enganá-los sempre. Quem deve aprender a ser gente são os burgueses e a elite que sempre hão de querer o controle de tudo, com o fito de reservar exatamente o que há de melhor para si, inclusive, as fontes de informação manipuláveis, como é o caso da imprensa que alimenta a mentira na cabeça de quem é forjado exatamente para pensar bem pouco, ou quase nada.

Tudo é deveras lastimável.

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CLÁUDIO MOTTA-PORFIRO*

*Escritor. Membro da Academia Acreana de Letras, Cadeira 27. Autor de O INVERNO DOS ANJOS DO SOL POENTE, romance, disponível pelo https://www.facebook.com/claudio.porfiro 

 

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