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Gente inteligente não morde, nem assopra

A professorinha há pouco concluíra um curso de ciências humanas numa universidade estadual mineira. Adquirira uma considerável capacidade na arte de encantar as pessoas com a linguagem escrita, e muito melhor com a palavra bem pronunciada. Sentia-se, enfim, preparada para enfrentar o desiderato das salas de aula, na escola pública. Em casa, o pai dizia que aquela criaturinha calada, simples, introvertida, em quatro anos, passara a falar pelas narinas e pelos cotovelos uma linguagem bem acima da compreensão dos de casa. Uma afoita. Foi isso o que ela se tornou.

No primeiro dia de aula, então, a didática da estreante já se foi elevando aos píncaros da glória, numa alusão ao Vicente Celestino. Nota mil.

Ela começou contando que um professor universitário havia sido vítima de um terrível assassinato. Na cena do crime, então, o investigador de polícia ouviu o depoimento de outro professor, amigo da vítima e a última pessoa a vê-la com vida. A pergunta foi sobre que assuntos eles haviam conversado por último. Como o interrogado era professor de filosofia, foi dizendo que comentavam sempre sobre Hobbes, Descartes, Pascal, Kant, Spinoza, Gramsci, Locke… Aí o detetive virou para o seu auxiliar e demonstrou toda a sua cultura em uma única fala:

– Anota aí os nomes de todos esses sujeitos. Vamos precisar dos depoimentos deles também.

Quando se trata de Filosofia, até as piadas são insípidas. Vejam só.

Aquela era a abertura do ano letivo. Ela se fora apresentar em um auditório com mais de quinhentos alunos secundaristas. A principiante não se fez de rogada e mandou bala, como se fosse palestrante há décadas. Lúcida a perder de vista, roubou a cena geral.

Segundo ela, o seu primeiro professor de filosofia viera da região de Colônia, na Alemanha, e falava o português com certas dificuldades, mas era o fino da bossa. Um luxo. Cara bonitão.

O homem tornara-se padre ainda na cidade natal, mas a Ordem dos Espiritanos lhe fez um convite. Veio ele, então, para uma região inóspita do Brasil, em meados do século passado. Escolástico de formação, todas as suas explicações filosóficas, é claro, tinham um viés nitidamente cristão. Partindo de alguns princípios básicos, ele nada falava sobre as desigualdades sociais, nem sobre as lutas de classe, mas dava pistas altamente brilhantes sobre regras de convivência, segundo o viés da Filosofia. E isso se fez deveras interessante.

Segundo ele, é preciso dizer aos mais novos que a Filosofia ensina como viver e, melhor ainda, como conviver, aceitando as diferenças entre todos, tolerando as opiniões e manifestações de cada um, e buscando sempre a harmonia. A partir de um fundamento tão simples, outros pormenores juntar-se-iam a este para tornar a Filosofia uma matéria de estudos sistematizada para uma melhor compreensão. Mas estes já são outros quinhentos.

A professorinha Isabela toda bela, depois de tecer mil elogios ao professor e ex-padre (arregalava os olhos ávidos pelo moço louro de olhos de esmeralda), sem perda de tempo, fundamentou as suas explicações em alguns conceitos sem os quais é impossível levar a bom termo os estudos filosóficos. Era de razão que ela se cobria, até porque já não tinha idade para a emoção, segundo ela própria. Em suma, qualquer humano que lute pela harmonização da espécie sobre a face da Terra deve ter conhecimento de abordagens bem simples.

Primeiro ela abordou, com muita clareza e simplicidade, os conceitos de razão e emoção. Nada de se apaixonar sem antes analisar causas e consequências. Os que usam e abusam da emoção deixar-se-ão levar por qualquer primeira versão lhe chegar à cabeça atrapalhada, sem nenhuma análise mais cuidadosa. Aqueles que fazem uso da razão examinam as ocorrências da vida nos mínimos detalhes e daí tiram as melhores soluções, através de um processo dialético que pondera sobre o que há de aproveitável entre os contextos que se contrapõem. A resposta não estará apenas de um lado. Há muita coisa útil no argumento contrário, e enxergar isso é deveras frutífero. É preciso aprender a refletir, enfim.

Partindo-se daí, chega-se ao conceito de ideologia, que são ideias que se propagam, seja para o bem, ou não. É bem-vindo o ideário da saúde a ser adquirida através das atividades físicas. Beleza. Todavia, é deprimente um laboratório farmacêutico internacional não permitir que se divulgue a vacina contra uma doença, porque é mais importante continuar vendendo remédios e ganhando dinheiro, principalmente, de quem não tem.

A maioria dos contendores das redes sociais não sabe que o termo país se refere à porção territorial onde vive um agrupamento humano, enquanto o termo nação diz respeito à origem das pessoas que ali vivem. Os curdos, por exemplo, são uma nação, mas não são um país, posto que não têm um pedaço de terra oficialmente seu.

Discutir política é essencial, porém com uma ressalva. A mais nobre das políticas é aquela que age em prol do desenvolvimento social. A primeira delas é a agradabilíssima política da boa vizinhança. Depois, vêm as políticas educacionais, de saúde e saneamento, de segurança pública, de produção de alimentos, dentre outras. Com relação à política partidária, havemos de convir que o debate em torno dela se faz enfadonho, no mais das vezes, por fatores que não me cabem aqui comentar.

Em verdade, a leitura de bons livros já esteve na ordem do dia de parte significativa dos brasileiros. Hoje, no entanto, as nossas novas gerações estão afastadas desse hábito. As castas menos privilegiadas, então, tomaram distância abissal e atiram livros pela janela, conforme foi por mim relatado em uma crônica denominada A incrível história dos livros voadores.

Ademais, a interpretação de textos, na escola, tem deixado muito a desejar. Não se vai muito além de excertos como o da galinha magricela, porque os significados das palavras e a distância que todos tomaram dos dicionários impedem avanços mais significativos. Por isso, lembro a mocinha que queria a nota máxima na redação do exame nacional. Ficou difícil, porque ela nunca leu um texto de mais de dez linhas e jamais escreveu sequer um bilhete à mãe pedindo desculpas por haver nascido.

Importa, certamente, lutar para a formação do cidadão crítico consciente; aquele que estudará as teorias e, em seguida, as aplicará a uma prática cotidiana enquanto cidadão contributivo e participativo.

É conveniente jamais esquecer que o outro, o vizinho, é, ou pelo menos deve ser, um sujeito ético igual a mim, consciente de si e dos outros, até que se prove o contrário. Há impostos escorchantes e nós os pagamos, juntos, para o bem da coletividade, da boa escola, da assistência de qualidade à saúde, da segurança pública, dentre outros fatores a que o estado de direito não deve se imiscuir.

A bem da verdade, é a mais pura verdade que gente inteligente, realmente, não morde. Apenas ensina, principalmente, a pensar. Só. Mas não assopra, porque também deixa claro como a crítica pode ser construtiva, quando se quer erguer algo mais sólido, principalmente, no campo das relações sociais.

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CLÁUDIO MOTTA-PORFIRO*

*Escritor. Membro da Academia Acreana de Letras, Cadeira 27. Autor de O INVERNO DOS ANJOS DO SOL POENTE, romance, disponível pelo https://www.facebook.com/claudio.porfiro 

 

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