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Em tua memória, oh meu santo poetinha

Ao nosso querido versejador do além.

Como bem recomendado por todos os santos e orixás, também tem ele chegado lá, aqui ou acolá, sempre e à mercê dos melhores presságios, passando por mil estágios, a cada instante, boquirroto e falante, mesmo sem tanta pressa, mas esforçando-se à beça, ainda com alguma parca poesia, pertinácia e teimosia, e sempre digno de haver sido confiado à divina providência, usando de uma certa dose de paciência misturada à boa malandragem e muita decência. Saravá!

Segundo a própria mãe natureza chega a pensar, ele é, sim, o bardo sem arrimo e sem berço rico, mas virtuoso o suficiente de forma a crescer e a prosperar, sempre, mesmo nas boas e nas más fases. Ide em frente, oh vate das amazonas.

Diz, agora, a arte:

– Ele é como todo bom brasileiro, que gosta porque gosta e está acostumado aos vaivéns diuturnos e ao felino voraz diário que deve ser morto à unha, ainda manhãzinha, nem que para que isso ocorra tenha, antes, que ir ver as tripas do ecologista do terceiro milênio que já não comia as onças magras e muito menos as gordas. Também, pudera. Ele não soube o que é passar fome.

Um pouco da arte que se derramou copiosa em ti, meu bom Vinícius de Moraes, no poeta das amazonas houve por bem cair tal e qual um leve borrifar, como se fosse o orvalho que desce do céu madrugada adentro.

Sim, a poesia do vate amazônico, aqui reclamado, é quase escorregadia por entre os dedos magros de bedel dos grandes poetas. É claro que, bem ao seu modo, vai ele guardando nos bolsos frágeis as devidas proporções entre os seus arrotos poéticos e a obra monumental do aplaudido e ofegante poetinha de Ipanema.

A lira amazônica é desafinada, pobre e rude, mas vai tocando festiva e bêbada e para a frente, da mesma forma que o trombone furado busca um som harmonioso que, na realidade, é roufenho, cansado e triste nas horas mais amargas e também nas ditas doces. Oxalá, oh Santo!

O Rio não é aqui e muito menos o Acre fica na Maravilhosa. E então, o que vem a ser essa tal arte que rega espíritos tão distanciados no tempo e no espaço?

Deixa está! O Flaubert disse um dia que o segredo da arte reside na sua própria beleza.

Daí, foi que ele piorou do mal que nos assola tal e qual as paixões mórbidas. Agora lembra Camões apaixonado. Depois lembra Drummond:

“… mundo, mundo, vasto mundo, se eu me chamasse Raimundo, seria uma rima, não seria uma solução”.

Tão rico!

Meio sem querer e sem jeito, o poeta do seringal foi chegando e baixando e saravando e alinhavando, aqui e acolá, alguma poesia que o engenho o faz parir, no meio do passeio público, sempre iluminado pela aura dourada do último grande sonetista do Brasil.

Ah, poetinha! É preciso dizer ainda que também ele tem vivido momentos de doçura e volúpia e libido fervente e infidelidade conjugal ou partidária, apesar dos polissíndetos, entre as musas e divas e ninfas e coelhinhas do seu tempo velho cansado de tantas guerras vencidas e tão poucas perdidas, nas graças que lhe são emanadas pelo Todo Poderoso. Saravá!

Sua bênção, avô Joaquim. Sua bênção, oh herói e estivador. Sua bênção, oh irmão Manuel, tu que hoje passeias de estrela em estrela até o infinito. Sua bênção, irmão Marcos, tu que nos impregnaste com tantos exemplos dos bons. Sua bênção, oh poetinha! Você que não é um só e é tanto, tanto quanto o meu Brasil de Todos os Santos, inclusive o meu glorioso São Sebastião, (de Xapuri).

Ora veja!

Também a um, como ao outro, anima a arte de entretecer a palavra que pode brotar doce, comedida ou ácida, dependendo da ocasião que faz ou desfaz o cidadão.

Quando flameja o fogo das paixões dilaceradas pelos ciúmes e perturbações do amor, ambos falam das mulheres enquanto meras estátuas de talco, o que é um tanto difícil ocorrer, mas acontece.

A seguir, nos momentos em que todos os pássaros amazônicos são azuis, as deusas do tempo arregalam e enchem de júbilo a pobre poesia triste, o espírito sutil, vagabundo, fóssil, fútil e devasso do poeta de cá. Lamentavelmente.

Então, ele fica feliz e lembra o Mário de Andrade, modernista, beletrista, professor de música: a verdadeira poesia só nasce nos momentos de grande devastação íntima.

Ora bolas! Que assim seja, amém!

E, por assim dizer, é como se no seringueiro houvesse um pouco de Vinícius, até mesmo a pretensão à morte prematura aos setenta e cinco anos. Também a boemia e o gosto pelo violão que ele não sabe tocar. Tudo isto, aliado à companhia das mulheres mais belas da aldeia e adjacências.

E ainda as flores, os acordes, a poesia, o uísque – o cachorro engarrafado – com o que todos se embriagam tão rapidamente.

Inspirem-se os dois, juntos e entretecidos. Então, assim ajustados, façam uma literatura de qualidade, ou não a façam nunca. É que hoje o seringueiro amanheceu Vinícius, como há cem anos passados. Foi cedo ao espelho. Vasta cabeleira clareada porque tingida ou pigmentada a caju, um gosto de azinhavre provocado pela bebida que não bebeu ontem, quando fez considerações supimpas segundo as quais as moças incultas e belas estão resguardadas dos pecados original e venial, porque mulheres bonitas não pecam, só atiçam libidos em desvantagem.

No futuro, quando te perguntarem sobre o que foi ter convivido, por tanto tempo, ao lado de um poeta menor, tu dirás que foi um período longo de pura poesia, encantamento e sedução diária. Hás de mentir, sim, porque a verdade pode tirar-te do aconchego do túmulo.

Ao versejador remendeiro de cá resta o ciúme e a cobiça pranteada, doce, branda, posto que o poeta pegador namorou as divas mais belas do seu tempo, no grande baile do municipal, de Regina a Lila a Nelita a Cristina a Gilda a Marta, dentre tantas…

Ah, quem te dera!

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CLÁUDIO MOTTA-PORFIRO

*Escritor. Membro da Academia Acreana de Letras, Cadeira 27. Autor de O INVERNO DOS ANJOS DO SOL POENTE, romance, disponível pelo https://www.facebook.com/claudio.porfiro >

 

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