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Uma certa distribuição de maçãs

O poeta embriagado de si, numa espécie de autoflagelação ritualística, volta a ser personagem de si mesmo. É forte. Ninguém escapa ao destino.

Foi num desses dias mais felizes, como quase todos. Adentrou o templo moço em vestes bem talhadas, circunspecto até as tripas, a persignar-se em frente ao altar-mor, onde estava o Padroeiro. Um bacana em todos os sentidos. Paletó bem talhado, perfil almofadinha, extremamente elegante na sua gravata borboleta vermelha de bolinhas brancas. Um dândi.

Na saída, a elegância em corpo de macho alfa fez confidência nas orelhas do amigo poeta. Disse que a incumbência deste é mesmo fazer farta distribuição de experiências literárias e conhecimentos diversos por onde quer que vá. Afirmou ser um árduo defensor da cultura brasileira. Muito inspirado, garantiu, enfim, gostar de cada pilhéria inventada pelos brasileiros mais criativos que são quase todos. Assegurou, sorridente e com ar de gozo perpétuo, que “uma roda de samba é a materialização da felicidade coletiva”. Aos ouvidos de quem faz poesia, isto é um mimo. Ao sabor de quem sorve rimas, é um néctar.

Ao que o poeta subtil operou no modo hipérbole, exageradamente:

– Meu ilustre jurisconsulto, somos dois dentre milhões de iluminados. Tenho um pé na senzala, as mãos no roçado e o coração na gafieira.

Em casa, depois da Missa, o versejador perpétuo perdeu o sono a meditar nas palavras do amigo de alguma data.

Desde as cantigas de roda, o poeta tem visto coisas interessantíssimas a dinamizarem a criatividade. No primeiro dia de aula (1964), já encontrou a Francisco Júlia (falecida em 1920) que falava no tal Patinho.

O pintainho do pato

                                               Branco, amarelo e novo

                                               Mal saiu da casca do ovo

                                               Busca as águas do regato (…)

Foi aí que se encantou pelas rimas. A partir de então, a Literatura passou a lhe povoar a vida. Muito embora tenha tido um caso e filhos com uma prima, a Filosofia, hoje está de volta aos braços da velha amante e aí permanece, fazendo arte, porque a criação literária não é ciência, é arte. E arte é cultura, que é muito diferente de História.

Advirto-vos que Vinícius de Moraes, Ariano Suassuna, Chico Buarque e John Steinbeck não apenas construíram a rota do poeta marrom, mas também foram fonte de inspiração. Um, pela forma apaixonada de fazer poesia. O outro, pela adaptação que faz da literatura de cordel à sua dramaturgia. O terceiro, pela modernidade da linguagem e o quarto, pela forma de narrar com muita intensidade e detalhes primorosos.

Faz muito bem ouvir o Suassuna falar da inventividade e da beleza do povo brasileiro: como esse povo é criativo, apesar das agruras. E é dessa forma, levando em conta a criatividade de muitos, que temos tornado a língua portuguesa, com a participação de cada um de nós, o sustentáculo mais forte da cultura brasileira. Por isto o poeta insultante fez um bom curso de Letras. Por isso anda por aí a fazer a defesa contundente da preservação do nosso idioma.

Vejamos a riqueza da criatividade do nosso povo.

Ariano dizia estar treinando um mentiroso em Recife… O cabra afirmava, com todas as palavras do dicionário, que o pai dele era o maior produtor de mel do Brasil. Era que ele havia conseguido fazer o cruzamento entre a abelha e o vagalume. Daí os bichos trabalhavam sem parar, de dia e à noite, pois tinham autonomia para voar guiados por luz própria.

Pense numa mente criativa. De onde ele foi tirar história tão hilária?

É conveniente dizer que a preservação de tanta criatividade passa, obrigatoriamente, pela preservação da Língua Portuguesa. Afinal, já dizia Cervantes, no século XVI: o português é a língua mais sonora e mais rítmica do mundo. E olhe que o homem era um espanhol.

Pensemos cuidadosamente… Se as melhores obras forem lidas cada vez mais pelos nossos mais novos, paulatinamente, estaremos nos livrando dos tais estrangeirismos que maltratam a mente e a língua. É espantoso ver a denominação Manauara Shopping, por exemplo, em Manaus. Um termo da língua tupi-guarani mancomunado com uma palavra da língua inglesa.

Não é apenas chocante como chega a ser triste ver que o nome do meu aprendiz de beletrista é Jean-Claude Van Damme Albuquerque de Oliveira. A minha afilhada é a Sharon Stone Mendonça da Silva. O meu ex-vizinho atende pelo nome de Cristian Gray Freitas de Souza, numa alusão aos 50 Tons.

É terrível!

Vejamos o tamanho da responsabilidade das pessoas que lidam com a cultura. É o nosso caso. De uma forma ou de outra, os que aqui estão não estão por acaso. Nós fazemos parte de uma casta de privilegiados que detém conhecimentos mais elaborados, mais sistematizados e, por isto, útil ao que nos diz respeito. Enfim, fomos concursados e provamos um certo grau em termos intelectuais o que nos permitiu desenvolver os nossos projetos em prol desta ou daquela instância governamental.

Um conceito clássico diz que a cultura serve como uma luz a iluminar os caminhos a serem percorridos por um povo. Para tanto, vou me valer de um exemplo bem acreano.

Um padre italiano foi enviado de Roma para Xapuri. O homem chegou com uns desenhos arquitetônicos muito estranhos (plantas). Em menos de cinco anos, ele e a comunidade já erguiam as primeiras paredes da Matriz de Xapuri. Em duas décadas, o prédio já se prestava às suas utilidades.

Mas veio a alagação de 2015 e a Matriz ficou muito deteriorada. O marco cultural mais importante da cidade estava seriamente comprometido. E foi aí que este mesmo marco cultural jogou as luzes para o futuro. As pessoas se uniram, se cotizaram, se esforçaram muito e conseguiram revitalizar o belo prédio. Se assim não fosse feito, certamente, poderíamos perder um dos maiores símbolos da cultura acreana.

É bom lembrar que Shakespeare, desde o século XVI, ainda hoje lança luzes da sua cultura teatral através de todos os palcos do mundo ocidental. Calderón de La Barca, do século XVII, ainda hoje ilumina as mentes criativas de dramaturgos de todos os naipes. A poesia sensual de Gregório de Matos ainda hoje me faz ver luzinhas coloridas piscando ao meu redor.

Reafirmo que o nosso idioma deve ser preservado. Trata-se da mais bela língua falada no mundo inteiro.

Ademais, é conveniente observar uma certa via de mão dupla. A leitura de bons livros veicula a cultura e é a cultura que nos leva à escolha das obras que ensinam a convivência harmoniosa que deve nortear a vida em sociedade.

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CLÁUDIO MOTTA-PORFIRO

*Escritor. Membro da Academia Acreana de Letras, Cadeira 27. Autor de O INVERNO DOS ANJOS DO SOL POENTE, romance, disponível pelo https://www.facebook.com/claudio.porfiro >

 

 

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