Minha filha mais nova faz parte de um coral. Está no grupo há pelo menos quatro anos. Ela vem ensaiando todos os sábados, das 10h ao meio dia e meia. Participou de algumas apresentações e gravou um CD em 2018. As temporadas que antecedem, um show ou as horas de estúdio, vêm sempre acompanhadas de muitos ensaios extras, reuniões das mães e pedidos de ajuda da maestrina. Ajuda física mesmo, fazer monitoria para as crianças, arrecadar fundos, preparar lanches, levar, buscar, levar, buscar, dar carona, fazer listas de presença, administrar conflitos do tipo “mas era eu a fazer esse solo”, “mas eu queria a camiseta X do figurino e não a Y”. Se você é mãe de uma criança que faz qualquer tipo de atividade extra escolar, visualiza perfeitamente o cenário. Tudo isso regado a trocas de mensagens sem fim nos muitos grupos de whatsapp que garantem o funcionamento da coisa toda.
Eu estive presente durante os processos pelos quais o grupo passou. E duplamente, já que até o ano passado, minha filha mais velha fazia também parte do mesmo coral. E estive por gosto, é uma alegria vê-las soltar a voz, vê-las se fazendo ouvir lindamente pelo mundo. Por gosto, repito, mas não só. Estive também porque como alguém que abraça a tarefa de criar filhos, sinto que tenho o dever de sustentar, dar assistência a quem não pode ainda ser autônomo em todas as tomadas de decisões, inclusive no que se refere ao ir e vir. Se uma criança se dedica a uma atividade com o apoio da mãe, é unicamente com esse apoio que ela pode e deve contar para que essa dedicação seja possível.
Tudo isso porque esse mês, a menor está envolvida na gravação de outro CD. Novamente, fiz parte de todas as etapas do processo e tenho vibrado muito com seu esforço e suas conquistas. A única diferença está no fato de que combinei com o seu pai que, desta vez, seria ele o responsável por estar fisicamente ali, durante – veja bem – o rodízio – só para ficar bem claro, eu disse rodízio, algumas horas, em revezamento com outros pais, (ops!) mães – na monitoria dos dias de gravação. A tarefa consiste em deixar tudo o que se está fazendo para simplesmente ficar lá. Quatro horas de um sábado. Lembra que comentei sobre os ensaios aos sábados, todos os sábados, quatro anos? Nada demais, certo? Errado. Atenção para algumas pegadinhas que deixei nesse texto. Veja se algum desses trechos incomodou.
- No começo do primeiro parágrafo: “…reuniões das mães”
- No finzinho ainda do primeiro: “Se você é mãe…”
- No segundo: “…com o apoio da mãe, é ‘unicamente’ com esse apoio…”
Pois no último domingo, dia das mulheres, fui buscá-la no fim de mais uma tarde de estúdio. Lá encontrei outra mãe – que surpresa! –, responsável pelo rodízio da tarde. Um mulher incrível, feminista, bem informada, de quem inclusive gosto muito. Ela me deu um abraço apertado e me disse: “Achei lindo de ver que a monitoria de ontem foi feita por um pai – o pai da minha filha – que amor, que dedicação desse cara passar a manhã de sábado aqui.” Juro que tive vontade de chorar. Mas respondi ríspida que aquela era também obrigação dele, listei, como fiz no início deste texto, tudo que eu já tinha feito pelo coral. Lembrei-a que, como ele, ela também passara suas horas de descanso de fim de semana ali.
Quando cheguei em casa, pensei em ligar para pedir desculpas pelo tom. Mas é 2020, já não cabe seguir se desculpando. Atentas meninas. Sim, meninAs. A maioria delEs certamente parou de ler este texto no título. As demandas não podem ser todas nossas.
Ps: a divisão de tarefas é só uma fatiazinha do problema, vocês sabem, não é? Há mulheres morrendo todos os dias. Não esqueçamos delas.
Roberta D’Albuquerque é psicanalista, autora de Quem manda aqui sou eu – Verdades inconfessàveis sobre a maternidade e criadora do portal A Verdade é Que…
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