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ARTIGO – Caminhos de índios: estradas e varadouros na floresta

Recentemente foram publicados estudos arqueológicos sobre caminhos indígenas milenares ligando antigas aldeias circulares e geoglifos no Acre, revelados com o uso de modernas tecnologias tipo LiDAR (Revista FAPESP, Jan. 2021; Revista Planeta, Dez. 2020; Revista Galileu, Dez. 2020; e Folha de São Paulo, 29.12.2020).

Porém, muito antes de me envolver com os estudos dos geoglifos, tive a oportunidade de caminhar por esses tipos de caminhos em floresta na margem direita do Rio Amônia até sua confluência com o Rio Arara, nas cercanias da cidade de Mal. Thaumaturgo, no extremo oeste do Acre.

Isso aconteceu menos de um ano após a conclusão do meu mestrado em Geociências na UFRGS, em Porto Alegre. De volta ao Acre, organizamos uma expedição Paleontológica e Botânica ao alto Juruá, na fronteira com o Peru. Da UFAC seguiram comigo a Profa. Nívea de Paula (1) (in memoriam) e o técnico William Ayache (2).

No fim de agosto de 1982 subimos o rio Juruá, a partir de Cruzeiro do Sul, em um batelão comandado pelo Lauro Grosso. Chegamos à então Vila Mal. Thaumaturgo onde fomos recebidos pelo Sub Delegado de Polícia, Sr. Manoel Rodrigues de Araújo, meu conhecido desde Rio Branco. Também conversamos e obtivemos informações úteis com o Sr. Getúlio Ferreira do Vale, de tradicional família do rio Amônia, e com o Cabo responsável pelo pelotão local do Exército, composto por alguns soldados do 7ºBEC.

Desde Mal. Thaumaturgo, usando um precário serviço de comunicação mantido pelo Governo do Acre, enviamos mensagens para o Reitor da UFAC e nossos familiares em Rio Branco. Um mês depois, ao retornar para Rio Branco, soubemos que as mensagens haviam sido entregues.

Nos organizamos para subir o Amônia até a localidade de Montevidéu, última “colocação de seringueiras” deste rio. Daí para cima a seringueira, cientificamente conhecida como Hevea brasiliensis e usada na produção da borracha, não cresce naturalmente na floresta. De Montevidéu seguiríamos a pé por um caminho indígena até o rio Arara, onde pegaríamos uma canoa para descer esse rio até sua confluência com o Juruá, onde o Lauro Grosso nos aguardaria com o batelão.

Iniciamos a viagem cedo da manhã em uma grande ubá com motor de rabeta, um “Burro Preto” de 9 HP. Conosco estavam o Sub Delegado, que manejava o motor, o Sr. Elias Gomes Bezerra, mais conhecido por Pistola, e o Eufrásio, que nos auxiliava desde Cruzeiro do Sul. Sentados na ubá, seguíamos na seguinte ordem: Pistola, Eufrásio, Nívea, Alceu, Wiliam, e o Sub Delegado no motor.

Chegamos pelo meio dia em Montevidéu, a menos de 5 km da fronteira com o Peru. Os proprietários eram o seringueiro José Gomes, conhecido por Zélis, e sua esposa Maria Amélia, de origem Kampa. Acima de Montevidéu fica a terra dos Kampas, hoje denominados Ashaninkas.

Aproveitamos a tarde para subir um pouco mais o Amônia e paramos em um roçado novo pertencente ao índio Carlito e sua esposa Martha e mais três filhos (3). Nas proximidades também morava o Cláudio, outro Kampa, com sua mulher e filhos. Conversamos muito e eles nos mostraram, entre outras coisas, o tear usado para confeccionar as Kushmas (4) com algodão nativo.  Os pés de algodão na roça do Carlito eram do tipo arbóreo perene e chamou-nos a atenção que a cor do algodão não era branca e sim marrom clara. Eu estava interessado em fósseis, mas a Nívea aproveitava e perguntava muito sobre árvores e botânica.

Voltamos a Montevidéu ao anoitecer. No tapirí encontramos o Zélis defumando borracha. Nívea, acreana de pé rachado, estava encantada. Aquilo era um espetáculo novo para ela. Na casa do Zélis estava também hospedado o índio Chipio (Manoel), morador da Foz do Breu, que tinha saído para caçar. Logo depois a Nívea, sentada no assoalho de paxiúba, cantava e encantava a meninada da casa. Cedo da noite ouvimos um tiro e logo chegou o Chipio, todo orgulhoso, carregando uma paca.

No dia seguinte acordamos animados. O desjejum foi reforçado com carne de paca ao molho, caçada na noite anterior, acompanhada de farinha de macaxeira, banana comprida cozida e café preto. Logo nos dirigimos para a boca do varadouro, rumo ao rio Arara. O começo da trilha se confundia com a última estrada de seringa do Rio Amônia. O Sub Delegado retornou com a ubá para Mal. Thaumaturgo

Após algumas horas de caminhada chegamos ao Igarapé Montevidéu e notamos rastros de porcos do mato, antas e onça em suas margens. Cruzamos suas águas cristalinas onde era possível observar pequenos peixes nadando no fundo, coisa rara de ver nas barrentas águas dos rios Juruá e Amônia.

Seguimos a caminhada em fila indiana por um caminho limpo e acidentado com cerca de dois metros de largura, sempre pela terra firme. Ordem da marcha: Pistola (com uma espingarda Boito 32), Eufrásio, Alceu, Nívea e William. O jantar foi garantido com um jacu abatido pelo Pistola com um tiro certeiro. No meio da tarde cruzamos o igarapé Taboca, esse já afluente do Arara.

Com sol ainda alto, chegamos à margem do Arara, nosso destino, onde vivia isolado o último seringueiro e sua família. O rio estava de repiquete, suas margens inundadas, e não havia canoa disponível para descer até o Juruá. Só nos restou repousar, jantar o jacu na água grande com farinha e aguardar o próximo dia para a volta. Menos mal, o caminho nós já conhecíamos.

Esses caminhos antigos, milenares varadouros indígenas escondidos pela floresta, ainda hoje são comuns nos altos rios e agora começam a ser revelados com as novas tecnologia tipo LIDAR, que conseguem ver através do dossel das grandes árvores na floresta Amazônica.

A população dos altos rios do Acre se comunica também por terra, não apenas pelos igarapés. Um varadouro bem conhecido e utilizado é o que liga o rio Tejo, afluente do Juruá, com a Foz do rio Jordão, na sua confluência com o rio Tarauacá.

O varadouro de Montevidéu até o Arara, passados quase 40 anos da minha experiência, ainda deve estar sendo utilizado e quem quiser ter a sensação de caminhar por caminhos indígenas milenares no interior da floresta, essa pode ser uma boa sugestão.


(1) Nívea Maria de Paula Fernandes, Professora da UFAC, estudou o Buriti (Mauritia flexuosa) em seu Doutorado no INPA, sendo a primeira curadora do Herbário do Parque Zoobotânico da UFAC. Faleceu prematuramente em 2019. Era filha do ex-reitor da UFAC, Omar Sabino de Paula.

(2) William Ayache, servidor aposentado da UFAC, foi lotado muitos anos no Laboratório de Paleontologia. Bom cozinheiro, participou conosco de várias expedições. É de tradicional família Sírio-Libanesa de Rio Branco, filho de Fuad Ayache, antigo Delegado de Polícia.

(3) Em 2006, em visita a Aldeia Ashaninka Apitwtxa, acima de Montevidéu, tive a oportunidade de voltar a encontrar a Martha e também o Cláudio. Entreguei a eles cópias das fotografias de 1982. Carlito já era falecido e as crianças eram todas adultas.

(4) Kushma, traje tradicional Ashaninka, é uma túnica longa confeccionado com algodão nativo fiado manualmente e tecido em teares originais. A Kushma é vestimenta de ambos os sexos, os homens usam com faixas coloridas verticais e as mulheres usam com linhas horizontais.


Por Alceu Ranzi

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