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Acreanos antes do Acre

Vamos imaginar a região do Acre antes dos relatos de Manoel Urbano, William Chandless e do Coronel Labre. Esse pedaço de terra localizado na região sul-ocidental da Amazônia, relativamente próximo dos Andes, era um mundo com uma variada e numerosa população nativa que convivia com a mais alta biodiversidade do nosso planeta distribuída em florestas sem fim cortadas por grandes rios meandrantes, igarapés e lagos piscosos.

Para os homens e mulheres que aqui viviam, a denominação “índios” não era e não é adequada, pois as terras descobertas por Cristóvão Colombo não eram a “Índia” que originalmente ele buscava quando içou velas das Ilhas Canárias em 3 de agosto de 1492. Povos “pré-colombianos” também não é adequado porque as pessoas que habitavam o Acre ocupavam a região desde possivelmente milhares de anos antes da chegada do navegador genovês ao continente americano, na região do Caribe. Ameríndios é ainda mais inadequado tendo em vista a controvérsia que cerca o primeiro nome do geógrafo italiano Américo Vespúcio: era “Amerigo”, “Alberico” ou “Albertutio”?

Muito antes da chegada de Colombo e de Pedro Álvares Cabral à região que hoje conhecemos como Américas, no Acre já haviam populações humanas, pessoas, gente. Muita gente. Eles viviam em uma região denominada pelos Incas de Antisuyu: uma grande porção de terras com florestas, calor e chuvas torrenciais desconhecida pelas autoridades das Coroas de Espanha e Portugal, que posteriormente se intitularam “donos” das mesmas.

Com certeza a chegada de Pedro Álvares Cabral nas praias da Bahia em 1500 passou desapercebida pelos habitavam da região que no futuro viria a ser conhecido como Acre. Da mesma forma, é provável que quando Pizarro ocupou Cajamarca em 1533, fato que determinou o fim do Império Inca, isso passou igualmente desapercebido pelos então moradores do Acre.

Antes de Chandless e Labre, que nos deixaram relatos escritos de suas observações ao longo dos rios Purus e Acre, são poucas as notícias de outras fontes confiáveis. Chandless, Labre e Manuel Urbano nos relatam que havia gente ao longo dos rios acreanos, e não eram seringueiros nordestinos. Eram “nativos” da região. É importante lembrar que até meados de 1860 a borracha não havia sido buscada nessa parte da Amazônia. Portanto, não nativos eram raros. Estavam de passagem ou passando uma temporada apenas por estas terras.

Deve-se notar que as primeiras grandes expedições pela Amazônia não passaram pelos rios que adentram o Acre. Orellana e Carvajal (1541-1542), Lope de Aguirre e Pedro de Ursúa (1559), Pedro Teixeira (1637-1639), todos navegaram o rios Solimões e Amazonas e passaram pelas bocas dos rios Juruá e Purus. Alexandre Rodrigues Ferreira (1783-1792), na sua Viagem Philosophica, navegou o Madeira e o Guaporé e passou pela boca do rio Abunã. Esse último foi o que chegou mais próximo das terras acreanas.

Além dos escritos de Chandless e Labre e os relatos de Manuel Urbano, outra fonte de confirmação da existência de muita gente no Acre está em processo de revelação pelos arqueólogos. Os geoglifos do Acre são um bom exemplo de obras monumentais existentes no Acre executadas pelos ocupantes milenares dessas terras. As escavações no sítio Tequinho, situado nas proximidades da Vila Pia, na rodovia BR-317 em direção à cidade de Boca do Acre, no Amazonas, revelou cerâmicas policromáticas de excepcional qualidade artística.

Outros estudos indicam que os primeiros habitantes do Acre já ocupavam a região há pelo menos 10 mil anos. Inclusive, foi possível recuperar restos de suas cozinhas e identificar que já naquela época eram utilizados vários alimentos comuns nos dias atuais, como abóbora, milho e mandioca, além de frutos de diversas palmeiras e também da castanha do Brasil.

Além dos geoglifos, novas tecnologias como o LIDAR (sigla inglesa para o termo Light Detection And Ranging), que se utiliza do laser para obter informações espaciais e produzir Modelos Digitais do Terreno e da Superfície, revelam a existência de trilhas ligando os geoglifos acreanos e uma grande rede de caminhos primitivos que provavelmente se conectavam com outras estradas construídas pelos antigos habitantes da região centro-oeste do Brasil e também com as estradas andinas do Império Inca.

Com o “boom” da borracha, num recorte temporal de 40 anos, entre 1880 e 1920, os moradores originais do Acre foram massacrados e expulsos de suas terras para permitir o estabelecimento dos barracões e seringais. Isso só foi possível com as “correrias” promovidas por pessoas como Pedro Biló e Felizardo Cerqueira, os mais afamados caçadores de “índios” das terras acreanas.

É preciso que se diga: grande parte das “pelas” ou bolas de borracha defumada produzidas nos seringais acreanos que seguia para as indústrias na Europa e nos Estados Unidos levavam consigo a marca do genocídio, pois eram manchadas pelo sangue dos habitantes primitivos do Acre que foram postos para “correr” das suas terras onde abundavam árvores de seringueiras. A maioria dos grupos que conseguiu sobreviver se refugiou nos altos rios, próximo da fronteira com o Peru, onde não haviam seringueiras. Longe, portanto, da cobiça dos coronéis e patrões seringalistas.

No Acre, atualmente, são numerosas as pessoas originárias, descendentes dos primeiros habitantes que adentraram a região milhares de anos atrás. Integrantes dos troncos linguísticos Pano e Aruak, ocupam várias terras indígenas demarcadas e consolidadas. Pertencem a distintas etnias, com destaque para os Yawanawas, Ashaninkas, Kashinauas, Manchineris, Apurinãs, Katukinas, Kulinas, Yaminawas, Nukinis e os famosos Náuas, que enfrentaram a expedição do explorador inglês William Chandless ao rio Juruá em 1867, que por isso só conseguiu chegar à boca do Rio Gregório, de onde teve que regressar.

Foi assim que os “acreanos antes do Acre”, ou seja, os povos originários que viveram em paz e em harmonia com a natureza por milhares de anos no atual território acreano tiveram sua paz perturbada e foram levados quase à extinção graças à Revolução Industrial que valorava esses “povos da floresta” em um patamar inferior às árvores produtoras de borracha.

*Alceu Ranzi é professor aposentado da UFAC e membro do Instituto Histórico e Geográfico do Acre

**Evandro Ferreira é pesquisador do INPA e do Parque Zoobotânico da UFAC


Para saber mais:

Fausto, C. 2000 Os índios antes do Brasil. Zahar, Rio de Janeiro, 94 pp.

Neves, E. 2006 Arqueologia da Amazônia. Zahar, Rio de Janeiro, 86 pp.

Prous, A. 2007 O Brasil antes dos brasileiros. Zahar, Rio de Janeiro, 142 pp.

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